Com antecedência (de 364 dias) fui convidado para a celebração de Bodas de Cristal do Groselha. Sem entender absolutamente nada do convite liguei para ele pedindo que me explicasse, e curiosamente não fui o único com dificuldades em ler a escrita em língua alemã (que coisa, não?).
A cerimônia ficaria a cargo do padre estrangeiro que na data visitaria Ibicitipiranapiancatiba onde possuía parentes distantes. Deixei agendado para não esquecer, afinal, quinze anos de união é por demais significativo para familiares e amigos.
Na data madruguei, chegando um pouco antes do horário com a certeza de pontualidade e, principalmente, cerimônia breve. Na entrada da igreja tive a mão carimbada (fortemente) por um leão de chácara, medida para se evitar a entrada de não convidados.
No interior não havia nenhum banco e vi duas crianças, uma em cada lado com vassoura e pá a postos, e fiquei com medo de perguntar qual o motivo. Pontualmente às 5 horas da manhã (sic) os convidados foram conduzidos ao pátio, onde recebiam repelente contra insetos e a lembrancinha (um cristal no formato de cisnes).
Ali estavam os bancos da igreja. O objetivo era que todos observassem o nascer do sol e se conectassem à criação divina, assim como é nossa existência e a certeza de que as dificuldades da vida são superadas como a cada novo dia há o nascer do sol e a renovação dos votos de união.
Após espera o sol não apareceu, mas uma chuva torrencial, sim. Foi preciso recolher e enxugar os (pesados) bancos. Como a maioria dos convidados não podia fazer esforços, o trabalho sobrou para poucos como eu. Havia muitas cadeiras que Groselhinha com o queixo queimado durante o ensaio para apagar as velas do bolo recolheu sozinho, mas entrando sempre pela porta da frente onde foi (fortemente) carimbado todas as vezes em que passou por ali.
Completamente encharcado fui até o carro onde tinha uma bolsa de viagem com outras roupas e já cansado voltei para a igreja a tempo de ver a entrada dos bonitos (e molhados) noivos e filho, este bastante azulado pela tinta. Aí alguém se lembrou do buquê, esquecido na cabeleireira. Um voluntário que conhecia o endereço foi buscá-lo, mas não havia ninguém. Com a floricultura fechada, houve (mais um) improviso: um maço de agrião com flores (até que ficou bonito!).
Munida do arranjo, mas com a longa e pesada cauda do vestido enroscada num dos bancos, a noiva não saia do lugar, problema resolvido pela avó do Groselha com certeiros golpes de canivete, encurtando o traje.
Os três se sentaram em cadeiras no altar, e o menino agora estava também vermelho pela alergia ao repelente. Antes de iniciar, o padre aguardou que todos (todos) assinassem o livro de presença, sendo cada assinatura fotografada pelo profissional que além da roupa de mergulho usava protetores auriculares. O ritual demorou demais, mas finalmente a cerimônia seria iniciada… em alemão… Felizmente (?) uma tradutora nos dizia, pausadamente, palavra por palavra, o que estávamos ouvindo, e isso demorou (muito), enquanto vez ou outra ouvia-se o barulho de cristais se espatifando, momento em que os “vassourinhas” prontamente entravam em cena recolhendo os cacos.
Feitos os votos houve distribuição de biscoitos da sorte (o do Groselhinha não continha mensagem) e todos (todos) disseram a mensagem tirada, traduzidas em seguida, palavra por palavra, para o idioma alemão.
O bondoso (e técnico) padre também se prontificou a orientar, do altar mesmo, os ajustes necessários para o serviço de chope, incluindo o cilindro de gás, válvula extratora, regulador de pressão, mangueiras e chopeira, claro, com tradução, palavra por palavra, e ainda esclareceu um equívoco da responsável pelo bolo, que escreveu einundfünfzig (51) ao invés de fünfzehn (15). Claro, fez toda diferença.
Conversei rapidamente com Groselhinha, que havia tomado antialérgico e iria se deitar um pouco. Estava mesmo sonolento. O almoço (às 15h40) no salão de festas foi tranquilo, após a benção dos alimentos traduzida, pausadamente, palavra por palavra.
Por fim a sobremesa, bolo de groselha (sem velas) e docinhos. A princípio o buquê original seria lançado de um balão, mas como estivesse ventando muito acharam por bem não fazê-lo, o que se deu (com o da salada) das escadas da igreja, sendo sortuda a avó do Groselha que o apanhou no ar com o canivete. Curiosamente enquanto disputavam o assessório as demais pretendentes mantiveram certa distância dela.
Às 18h35 a benção final (palavra por palavra…) quando o padre desculpou-se dizendo que infelizmente não poderia estar presente no ano seguinte, na celebração de 16 anos de casamento (bodas de turmalina).
Como a principal característica da turmalina é a capacidade de dissipar energias negativas, logicamente fiquei otimista enquanto auxiliava nas buscas pelo balão que havia se soltado com um menino dormindo dentro.
Autor:
Miguel Arcangelo Picoli é autor do livro Momentos (contos) e Contos para Cassandra (em homenagem à escritora Cassandra Rios).