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sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Minha vó, o Doraci e a Obsolescência programada

Semana passada, o frenesi da Black Friday dominou o cenário. As lojas agitadas, repletas de pessoas ansiosas por uma Air Fryer estamparam todos os jornais. Essa cename fez lembrar de minha avó, que nunca gostou do evento. Cresci na casa dela, em uma pequena cidade do interior de Minas Gerais, onde um som ecoava desde a minha infância: o de um radinho. Minha avó era entusiasta do rádio e aquele aparelho era seu fiel companheiro, transmitindo os maiores hits dos anos 90. Quase trinta anos depois, e o mesmo radinho, carinhosamente apelidado de Doraci, permanece a seu lado, como um membro da família. Bom, indo direto ao ponto, a tarefa de presentear minha vó era sempre um desafio. Ela não se entusiasmava com a maioria das coisas da moda. Então, no ano passado, durante o aniversário dela, decidi presenteá-la com um toque de modernidade: uma Alexa. Entrei no site da Amazon e comprei uma, parcelei em dez vezes e até paguei um frete adicional para garantir a entrega no dia seguinte, ansiosa para surpreendê-la. Afinal, quem não adoraria um presente desses?

No auge da festa, entreguei o presente e brinquei: “Agora é hora de aposentar o Doraci e deixar a Alexa assumir seu posto”. Configurei o dispositivo e mostrei como bastava dizer “Alexa” para que ela tocasse qualquer coisa. Minha avó logo pegou o jeito, e acreditei que a Alexa se tornaria sua nova companheira. No entanto, quando apareci para uma visita semanas depois, percebi que o Doraci ainda estava ativo. Procurei pela Alexa e a encontrei, de volta na caixa, no fundo do guarda-roupa. Confesso que fiquei um tanto chateada, duvidando que minha avó tivesse gostado mesmo do presente. Inquiri imediatamente: “Vó, por que encarcerou a Alexa? Algo deu errado?”. Minha avó respondeu que gostava do Doraci, que mesmo ele sendo já um senhor de idade, ainda cumpria muito bem a sua função.

Aquela confissão ecoou profundamente em mim, levando-me a questionar como um aparelho tão antigo ainda funcionava como novo. O Doraci, que deveria ser mais velho que eu, era para minha vó o que meu celular era pra mim: ela escutava músicas e novelas, acompanhava a missa, ficava sabendo das promoções da cidade ou até mesmo se alguém tinha morrido. Então, como poderia durante esses tempo todo, eu ter trocado de telefone pelo menos quinze vezes, enquanto minha vó permanecia com o mesmo rádio, trocando, quem sabe, as pilhas? Eis que surgiu uma reflexão perturbadora: como poderia o velho Doraci persistir em seu esplendor após décadas, enquanto dispositivos modernos se tornam obsoletos em questão de anos?

A resposta, compreendi, residia na obsolescência programada. Na verdade, as coisas eram projetadas para estragarem antes do tempo, impulsionando o ciclo de consumo. Essa sociedade do consumo é movida pelo desespero por novidades e nossa busca pelo último modelo nos cega para as escolhas mais sensatas O problema fica pior quando esse mecanismo não apenas influencia no consumo desenfreado, mas também contribui para o acúmulo de lixo e degradação ambiental. Empresas prosperam enquanto o planeta sofre as consequências. A verdade é que a transformação não virá dos fabricantes, mas de uma mudança coletiva de atitude. Construir uma sociedade menos efêmera exige uma nova mentalidade, onde a busca pelo último modelo ceda lugar à valorização do durável. Ao fazermos escolhas conscientes, rompemos o ciclo e semeamos as bases para um amanhã mais sustentável. E, quem sabe, se mais de nós agirmos como minha avó, criando demanda por produtos duradouros, poderemos finalmente tornar a obsolescência programada… obsoleta.

Autora:

Victória Caetano

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