18.9 C
São Paulo
sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Fim de Semana (de cão!)

A última coisa que pude ver foram as lanternas do ônibus se afastando. Sabia apenas que me encontrava na entrada da fazenda e decidi aguardar alguns minutos até me acostumar (?) com a completa escuridão. Finalmente iria rever o amigo Groselha, agora trabalhando no campo. Uma oportunidade de ouro para provar que ele não era nenhum azarado e nem atraía azar para os amigos. Mas que bobagem! Seria também um final de semana para esquecer o trabalho, stress e agitação da cidade. Mal podia esperar para provar as delícias feitas na fazenda, o leite puro, doces… O atraso de horas na rodoviária devido às chuvas somente aumentara minha fome. A visibilidade ainda era zero, mas o cansaço e o reinicio da chuva me fizeram decidir pelo risco. Depois de muitos escorregões (e quedas) avistei uma fraca lâmpada. Salvo!

Como o Grosa me dissera, a primeira casa era a do administrador. A dele (claro) era a última, quase 500 metros (e no escuro) depois. Muito tarde para haver alguém acordado, mesmo constrangido bati à porta. Sua mãe me atendeu e disse que ele estava noutra parte da fazenda, onde ficaria até a manhã seguinte. Mostrou-me onde poderia ficar e… foi só. Atribuí ao horário e aos hábitos e condições da família não me oferecerem mais. Naquele momento e outra vez no escuro lamentei não ter levado uma lanterna. Mais tarde, lamentaria ter estado ali.

O quarto sem lâmpada (e sem porta), era apenas meu e do… Duque, um enorme cão que não tirava os olhos de meus pés … por que seria?! Usei minha toalha e roupas secas e tentei dormir numa cama extremamente desconfortável. Não deu. O despertador parecia ter seu “tic-tac” amplificado alguns milhares de vezes, além de uma incômoda “lataria” sob o beiral do telhado. Desprovida de forro a casa lembrava muito a entrada da fazenda, e a chuva não parava.

Custou mas “amanheceu” … foi o que deduzi quando alguém (sei lá quem era) veio me perguntar se não queria uma carona até o local onde o Grosa se encontrava. O que me parecia irrecusável, se mostrou sofrível. Eram quatro horas, não consegui encontrar um dos tênis (também desconfiei dele), não havia (o tão sonhado) café da manhã, a carona era num trator e logo de cara uma das lentes do óculos caiu e (claro) quebrou.

Eu também me perguntei o que faltava acontecer. Mas descobri logo: o tratorista era surdo, o que impossibilitava qualquer comunicação num trajeto interminável (aí entendi o porquê do nome Fazenda Grande) e, é claro, sob chuva. Num dos inúmeros solavancos também perdi meu relógio. Chegamos (ao outro lado da fazenda) e… surpresa! … o Groselha não estava no galpão. Como o funcionário me dissera para esperar que “logo” ele viria, esperei. Esperei … juntando a fome e o frio resolvi voltar à pé até a casa. Se havia sido interminável de trator, imagine com um pé calçado e outro não.

Já era próximo da hora de jantar e não havia ninguém. Até poderia tomar um banho (frio), mas não tinha roupas secas. Minha alegria aumentou quando o morador da casa ao lado veio me avisar: todos haviam ido à cidade visitar um parente muito doente. Dificilmente voltariam no mesmo dia.

Não tive dúvidas: deixei um bilhete agradecendo “por tudo” e prometendo voltar em breve (Pinóquio!). Peguei minhas coisas e voltei para a estrada à espera de ônibus. De fato, seu horário não era muito regular mas não me importei em aguardar mais algumas horas sob chuva, frio, e com um pé na lama. Na rodoviária, tudo fechado. Teria que esperar pelo dia seguinte para me alimentar e sair dali. Mas que noite! Amanhecendo, comi quase tudo que havia para ser vendido no local, além de uma garrafa de café.

Resolvi, ainda, comprar um par de calçados para minimizar o sofrimento. Já no ônibus a caminho de Jundiaí decidi ver se não havia algum selo ou preço pendurado nos sapatos. Àquela altura nada me parecia impossível. Não havia selo, mas na sola havia a inscrição do fabricante: Duque Calçados… Grrrrrr !!!!!!

Autor:

Miguel Arcangelo Picoli é autor do livro Momentos (contos) e Contos para Cassandra (em homenagem à escritora Cassandra Rios).

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Leia mais

Patrocínio