Recebi pelo correio diferente convite no formato de um casal de elefantes, em comemoração aos 14 anos de casamento do Groselha. Junto, uma carta onde contava comigo e dizia para ir à vontade, já que o traje seria esporte. Aliviado por não haver previsão de chuva, ser padrinho ou precisar de terno e sapatos, confirmei presença.
A matriz de Ibicitipiranapiancatiba não havia mudado nada desde que estivera ali, um ano antes, mas a recepção me pareceu um tanto acriançada. Conferi o convite que havia dobrado dezesseis vezes para que coubesse no bolso, e estava no lugar certo.
Na chegada, ao mesmo tempo em que se era torturado com um solo tenebroso de violinos, convidados recebiam colar e pulseira de presas. Achei que seria chato recusar, assim como chapéu de aniversário com um doloroso elástico. Vi Groselhinha ao longe e o cumprimentei com um aceno que retribuiu, mas embaixo de uma árvore, acertando um galho onde ficou com a mão presa. Alguém o ajudou. Sabia que ele levaria as alianças junto de um buquê, e achei diferente. Estavam na cidade havia quase um mês, aproveitando férias do trabalho e escola.
No pátio ao lado, algodão doce, pula-pula, pipoca, balões coloridos, piscina de bolinhas, pintura facial, tatuagem temporária, amarelinha, bolhinhas de sabão, cama elástica, e soube depois que o único buffet que conseguiram só sabia fazer festa para crianças, com seus funcionários fantasiados de super-heróis.
Reconheci o fotógrafo do ano anterior usando roupa de mergulho sob o terno, e portando máquina à prova d’água. Também o achei um tanto apreensivo. Nas escadas diante da igreja havia um engraxate, profissional que há muito não via em nenhuma cidade e fiquei sem entender por que havia fila se ninguém usava sapatos. A avó do Groselha estava presente, desta vez sem o guarda-chuva e a ave sobre o ombro, mas acompanhada de uma enorme pata chamada Lina, que gostava de bicar (doído!) canelas.
Os violinistas (o mesmo casal que no ano anterior brigara dentro e fora da igreja) desconheciam a palavra música, e com atraso de uma hora e meia (que me pareceu bem mais) o sacerdote com vários colares e pulseiras de presas estava no altar. Nesse momento ouvi intensa gritaria do lado de fora achando que a noiva chegara, mas era alguma outra coisa. Foi quando o ruído dos violinos cessou e agradeci a Deus pelo momentâneo problema técnico: as cordas não suportaram tamanha tortura, mas nada que as crianças não resolvessem pedindo ao padre para substituí-las, o que fez com o auxílio de um alicate que carregava consigo, guardando-o depois numa caixa de ferramentas sob o altar.
Logo a tragédia musical anunciava a chegada da noiva (momento em que a pedido do celebrante, colares e pulseiras ficaram iluminados), enquanto o noivo aproveitou para engraxar os sapatos, atrasando o evento por mais alguns minutos. Depois, lentamente se dirigiram ao altar enquanto o padre conferia se todos estavam de chapéu e quem quisesse poderia trocá-los, mas eu estava com o Urso da Masha e gostei dele, apesar do elástico apertadíssimo. Quando ia iniciar a cerimônia foi anunciado no sistema de som (que incluía o interior da igreja) um veículo estacionado irregularmente, pedindo ao “legítimo proprietário” que fosse até o local. Pela placa achei que sabia de quem era o carro e em seguida Groselha foi resolver o problema, deixando a noiva no altar. Como seu veículo era “adaptado ao Groselha” somente ele mesmo para saber a ordem das marchas e botões sem identificação no painel.
Achei que não demoraria, mas passados 40 minutos saí (de chapéu) discretamente para ver se precisava de ajuda, embora nenhum dos presentes (até a noiva) mostrasse qualquer preocupação. Na rua ao lado lá estava ele, em animada conversa com um conhecido que há muitos anos não via. Começaram a conversar e ele havia se esquecido de voltar à cerimônia… Acontece.
De volta ao altar a celebração teve início. Foi quando uma jovem vestida de mulher Hulk (verde, inclusive) me perguntou se aceitaria salgados que trazia numa grande bandeja. Educadamente perguntei-lhe se não estaria sendo inoportuno vender salgados dentro da igreja e em plena cerimônia, mas me explicou que não estava vendendo, e sim servindo os convidados, pois era funcionária do buffet. É queteriam de estar noutra festa em seguida, e com o atraso precisavam servir os convidados antes de irem embora.
Num instante a igreja se transformou numa praça de piquenique com bebidas, lanches e salgados, tudo gostoso e o que mais me agradou é que, embora tentassem, as crianças não conseguiam se alimentar e tocar ao mesmo tempo. Todos satisfeitos, muito tempo depois a cerimônia foi retomada quando a igreja foi invadida por intensa fumaça, que o padre explicou sendo um “probleminha” com o fogão a lenha da casa paroquial, coisa que ocorre em toda igreja (não… não ocorre).
Adorando a presença da ave, convidou a avó e a pata Lina para irem ao altar, onde por mais de meia hora tentou, sem sucesso, que a ave grasnasse “alguma coisa” ao microfone. Nesse meio tempo recebi um papelzinho com número manuscrito para concorrer ao sorteio de um ovo.
Com olhos e garganta ardendo, muita tosse e quase sem respirar, era o momento das alianças. Groselhinha começou a caminhar em direção ao altar e de onde estava achei que em pouco tempo havia crescido tanto, mas ao vê-lo mais próximo notei que além da mão enfaixada estava inchado por tantas picadas de abelhas, motivo da correria fora da igreja, horas atrás. Com os olhos quase fechados tropeçou em vários bancos até chegar ao altar, mas o que importava é que os anéis seriam abençoados e logo estaria livre, até porque a festa já havia acontecido, faltando apenas o bolo de tangerina e lembrancinhas (sachês em formato de elefantes).
Houve uma certa demora até que as alianças fossem destrocadas (por isso não serviam em ambos) enquanto uma garotinha veio me pedir para trocar o chapéu com ela, mas além do meu ser mais bonito e o elástico já não apertar tanto, o dela era do Olaf. Não troquei!
Finalizada a cerimônia todos fomos ao pátio, onde as crianças choravam porque os brinquedos haviam sido levados à outra festa e os colares e pulseiras deviam ser devolvidos (pois pertenciam ao acervo da igreja), e a avó do Groselha manuseava habilmente seu canivete fatiando o bolo e espetando docinhos nos pratinhos. Pude presenciar o fotógrafo trocando sua câmera pelos dois violinos (se eu tivesse com o que trocá-los teria feito o mesmo), e em seguida as crianças começaram a brigar (feio) pela máquina.
Na saída dos noivos uma grande chuva de arroz que acabou atraindo um bando de gaivotas (também me perguntei o que aves marinhas faziam ali) que bicavam vorazmente tudo o que viam pela frente, no melhor estilo Hitchcock. Foi um tanto difícil cumprimenta-los em meio as aves famintas enquanto apesar de tantos convidados Lina bicava somente minhas canelas (soube demasiado tarde que o engraxate também vendia caneleiras), mas consegui sair com meu chapéu e fiz questão de dar um forte abraço no fotógrafo. Não encontrei Groselhinha para me despedir. Ele acabou entrando em carro errado para dormir um pouco após ter sido atropelado pelas pretendentes do buquê (tão ávidas quanto as gaivotas) e só foi devolvido à família no dia seguinte.
Bem… Agora é esperar um mês para saber se terei um patinho em casa, e um ano quando irão comemorar bodas de cristal. Claro, mal posso esperar.
Autor:
Miguel Arcangelo Picoli é autor do livro Momentos (contos) e Contos para Cassandra (em homenagem à escritora Cassandra Rios).