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sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Bodas de Linho

Devido a montagem de um palco o trânsito em volta da matriz estava interditado, o que me obrigou a dar algumas voltas em busca de uma vaga. Nesse meio tempo, ouvi o ruído mais estranho e assustador de toda minha vida. Pensei num pterodáctilo, chegando a olhar para os céus, mas o que quer que fosse não se repetiu. Precisei deixar o carro numa subida um pouco distante da igreja e justo onde iria estacionar, uma senhora com uma ave no ombro e com um enorme guarda-chuva conduzindo uma charrete roubou minha vaga. Sem problemas, estacionei mais à frente.

Foi bom chegar um pouco mais cedo. Nunca fui amigo de festas e cerimônias, e bem que tentei escapar daquela também, mas não houve jeito. Groselha iria comemorar treze anos de casamento, casando-se novamente… A cerimônia seria às 16h, e faltava pouco para o horário. Antes de entrar na igreja passei por um casal de crianças que se estapeavam de um modo impressionante. Como nenhum adulto interviu achei melhor separá-los e falar um pouquinho com eles. Nenhum deles abriu a boca, mas ao menos a briga parou.

Não conhecia ninguém, a matriz de Ibicitipiranapiancatiba estava lotada, o calor era intenso e o terno só piorava a situação. Meus pés queimavam nos sapatos novos, mas como Groselha disse, seria uma cerimônia rápida e simples. Que bom! Um dos sinais de que não seria demorado é que de padrinhos apenas a avó materna dele, que eu também não conhecia, e eu. Aguardei na entrada no lugar combinado junto a uma fita com um laço vermelho. A igreja estava lindamente decorada, ainda que com flores artificiais.

Bem… eu já estava (desconfortavelmente) ali havia vinte minutos e… nada. Quando a madrinha chegou, vi que era a mesma senhora que havia visto ao estacionar, e para minha surpresa ela iria para o altar com o indiscreto guarda-chuva; com a tal ave num dos ombros, e o tenebroso som do pterodáctilo era, na verdade, sua gargalhada… Deus…! Mas nada de preconceito. Sempre ouvira todos falarem bem dela, e aquele era apenas seu jeito exótico (aos meus olhos e ouvidos) de ser.

Cumprimentei-a e após alguma dificuldade para segurar seu braço sem derrubar o guarda-chuva ou levar bicadas da (agressiva!) ave, pensei que deveria apertar o passo em direção ao altar, mesmo a igreja não sendo grande. Mas, outra surpresa: após cortar a fita com um canivete, a avó madrinha fez questão de entrar em fileira por fileira dos bancos e cumprimentar cada um dos presentes, conversando demoradamente com alguns. A todos fez questão de mostrar com orgulho indisfarçável, a carteirinha de sócia número 0001 da Associação dos Diabéticos e Hipertensos da cidade. Arrastado tive de ir junto, me espremendo entre os convidados. A temperatura que já era alta, disparou!

Do interior da igreja era possível ouvir a chuva que começava a cair forte acompanhada de muitos trovões. Demorou bastante, mas chegamos à frente do altar. Nisso ela voltou-se para a porta de entrada para conferir se havia cumprimentado a todos (felizmente, tinha). Subimos alguns degraus e ao invés dela parar ali, ao meu lado, entrou por uma porta lateral e foi até o coro cumprimentar os integrantes. De lá, fez sinal para que eu também fosse… Demorou também. De volta ao altar, alguém gentilmente teve a preocupação de pegar uma cadeira para ela sentar-se… E eu?!

Mais vinte minutos de espera (e uma câimbra), a daminha e o pajem entraram pelo corredor. Era o mesmo casal que estava brigando na rua! Ambos bem vestidos, não demoraram a se desentender novamente, e a luta corporal se deu no meio do corredor da igreja. Novamente a turma do “deixa disso” não se habilitou e lá fui eu altar abaixo apartá-los, conversar com eles e pedir que se comportassem e levassem as alianças para que o casamento tivesse início (eu já estava ali havia mais de duas horas!).

Deu certo, mas faltava encontrar as alianças que sumiram durante a briga. Lá se foi mais um tempo, até que as encontraram e as levaram até o altar. O nariz dele sangrava, ela estava toda descabelada e ambos respiravam ruidosamente. Ainda assim, encantaram os convidados (que coisa, não?!).

Aí que a madrinha me pediu para lhe buscar água. Entrei pela porta lateral e após encontrar o bebedouro, trouxe- lhe um copo. Logo depois precisei procurar vassoura e pá para recolher os cacos… De volta ao altar, faltavam apenas os noivos e o padre.

Com um atraso de quase três horas chegam os noivos, parcialmente bem vestidos (já que dos joelhos para baixo estavam encharcados) e minha esperança de que aquele pesadelo tivesse fim, se renovaram. Nisso, o padre entrou e aí sim achei que as dores nos pés e pernas e o desconforto pelo forte calor teriam fim. Cumprimentou a madrinha, e em seguida perguntou- me se era amigo do Groselha. Disse que sim, ao que ele colocou as mãos sobre meus ombros e exclamou: “Deus o abençoe, meu filho!”

Outra vez a madrinha pediu água. Tentando coordenar os passos, entrei pela porta lateral, e fui buscar. Em seguida o padre me pediu o mesmo favor… Com todos no altar faltava apenas dar início à cerimônia, mas… tivemos de aguardar a madrinha, que foi até o último banco da igreja para cumprimentar algumas pessoas que haviam chegado atrasadas. Quando voltou ao altar a energia elétrica se foi e a solução foi ligar alguns lampiões espalhados pela igreja que começava a ser invadida pelas águas da tempestade. Felizmente os bancos estavam alguns degraus acima da entrada, que logo ficou alagada.

A cerimônia teve então início com um belo sermão do padre, que usou até exemplos baseados na vida das aves (de onde afinal ele havia tirado essa inspiração?) para falar de amor, fidelidade, etc. Finalizando, abençoou o casal e desejou que assim que fosse possível todos fossemos felizes para casa. Pouco depois o fotógrafo caiu nas águas, danificando todas as fotos tiradas. O briguento casal de crianças dormia lado a lado no primeiro banco, e eu já previa ter de carregar a madrinha, ao menos na área alagada da cidade.

No mais, tudo transcorreu bem. Quando cumprimentei os noivos disse-lhes que lamentava os contratempos, ao que me disseram que nas Bodas de Marfim (ou seja, no ano seguinte) tudo seria ainda melhor… Viva os noivos!!!

Autor:

Miguel Arcangelo Picoli é autor do livro Momentos (contos) e Contos para Cassandra (em homenagem à escritora Cassandra Rios).

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