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terça-feira, 23 de julho de 2024

Vizinhos

Discussões na casa ao lado não era nenhuma novidade. Quando não havia um conflito, eram dois ou mais. Felizmente apenas reclamações, insatisfações, sem nada de violência; mas naquele dia as coisas pareciam piores, mais tensas, e o filho disse que iria embora e não voltaria nunca mais (ah, minha audição não era tão boa assim…. é que eles falavam um bocado alto mesmo). Mais tarde vi que falava sério, pois juntou (ruidosamente) suas coisas, e se foi (batendo a porta, inclusive).

Fiquei preocupado com ele, pois até onde sabia nunca havia trabalhado, não tinha como se manter nem para onde ir. E com sua mãe, já que era o único filho e quem fazia tudo que fosse necessário para ela. Parentes, não tinham. Seria complicado intrometer-me numa questão familiar, mas me senti na obrigação de tentar algo para reaproximá-los.

Como estivesse de férias, decidi acordar mais cedo no dia seguinte, pois sabia que ela não deixava de varrer a calçada logo pela manhã, e seria uma oportunidade para conversarmos.

Após o cumprimento e uma ou outra conversa fiada, perguntei por ele, e se ainda estaria dormindo. Bastante magoada, contou-me o ocorrido. Demonstrei surpresa e procurei confortá-la. Disse-lhe que os filhos são assim mesmo… Dão trabalho e preocupação às mães, mas logo ele perceberia o erro e estaria em casa novamente. Ela, com a certeza de mãe que jamais se engana assegurou-me: ele voltaria naquele mesmo dia, mas deixou claro sua indignação.

Mais tarde, após o almoço quando retornava das compras, avistei-o com algumas sacolas que mal conseguia carregar. Ofereci-lhe carona e perguntei-lhe se voltava de algum passeio. Contou-me o ocorrido e novamente demonstrei surpresa.

Às vezes é muito difícil dar conselhos à alguém de faixa etária muito diferente da nossa, mas procurei conduzir a conversa enfatizando que a família é sagrada, e sendo pequena é preciso ser unida. Afinal, até aquele dia foi apenas com ela que pode contar todos os dias de sua vida, já que o pai falecera quando tinha dois anos.

O episódio foi superado, ao que parece sem dificuldades. No dia seguinte, discussões voltariam a fazer parte do dia a dia da casa ao lado. Após algum tempo precisei me mudar por conta do trabalho, e fiz questão de me despedir deles, de quem fui vizinho por muitos anos, desejando que vivessem bem, e juntos. Afinal, ela já tinha completado noventa e nove anos, e ele, seus oitenta e três.

Autor:

Miguel Arcangelo Picoli é autor do livro Momentos (contos) e Contos para Cassandra (em homenagem à escritora Cassandra Rios).

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