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quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Dicotomia, encontros e desencontros

Tem dia que de noite é assim mesmo. Pode acontecer de tudo, ou até mesmo nada. O cara pensa, estuda, consulta, planeja, simula, decide, mas dá tudo errado. É como disse o capitão da força aérea americana Edward Murphy “Se alguma coisa possui uma remota chance de dar errado, certamente dará errado”. Essa frase originou o compêndio conhecido Lei de Murphy. Há quem diga que diabo mora nos detalhes mas, no corre-corre em que vivemos, quem tem tempo de prestar atenção nos detalhes?

Um possível corolário é: “Quando menos se espera, aí é que nada acontece”. Ou acontece. Sei lá. O mundo, a vida, os humanos, tudo é bastante caótico. Muitos tentam desenvolver métodos, algoritmos, aplicativos e toda sorte de baboseiras para identificar seu par perfeito, ter sucesso nos negócios, sorte no jogo e coisas assim. Parece que a única certeza da vida é a incerteza e a única constante é a mudança. Vejamos dois casos muito doidos:

A união instável entre Maimônides e Salomé, dele seu início, caminhava para um final infeliz. Tudo começou com o velho clichê do encontrão. Trombaram dentro do mercado, as compras foram ao solo, abaixaram-se para pegar os pacotes e ao se levantarem, bateram cabeça com cabeça. Olharam, sorriram e o namoro começou, tal como acontece em 87% das comédias românticas de Hollywood.

Zanzibar, o sisudo pai de Maimônides, é vigia no Templo da Salvação, seita neopentecostal fundamentalista renovada. Deu ao filho o nome do mais importante intérprete moderno do Torá, embora não tenha a menor ideia do que signifique Torá, intérprete ou neopentecostal. Queria que o filho fosse pastor, mas ele se tornou vendedor de Plano de Saúde por telefone, aqueles caras que telefonam nos horários mais inconvenientes. No passado, Zanzibar nunca teve nada e hoje também não tem coisa alguma. Maimônides frequenta o Templo e segue os mandamentos, mesmo sem compreender uma palavra.

Abadia e sua filha Salomé trabalham no Cabaré “Aqui se faz, aqui se paga”. A jovem é fascinada pela figura bíblica da moça que inspirou seu nome, aquela que encantou o rei Herodes com sua dança e em troca pediu a cabeça de João Baptista numa bandeja. Ela desconhece a história e está certa de que foi graças à Salomé que surgiu a expressão “entregar de bandeja”, que é seu trabalho no Cabaré: dançarina e garçonete.

A moça, sem estudo ou vocação, continuou dançando no Cabaré e o rapaz se manteve fiel à orientação do Templo. A dicotomia entre os princípios começa justamente aí: ele é adepto de pregação e ela de pegação. Salomé adora sexo, rock, cuba libre e não quer filhos. Maimônides não bebe, não fuma e entende que sexo e casamento se destinam exclusivamente à procriação. São situações difíceis de conciliar.

Outro encontrão selou o fim do relacionamento. Num início de noite, quando ambos saiam de casa para seus compromissos, ele no Templo da Salvação e ela no Antro da Perdição, foram atropelados pela bicicleta de um entregador de pizza. Os três foram levados ao pronto-socorro e enquanto Maimônides recebia os cuidados da angelical auxiliar de enfermagem Samária, nome que homenageia à boa samaritana, Free Willy da Silva, o ciclista, pedalava prá cima de Salomé. Quando o fiel deixou o pronto-socorro, Salomé e Free Willy já estavam na casa do ciclista, na cama. Quando retornou ao P. S. para refazer os curativos, Maimônides levou sua nova alma gêmea Samária para seu lar. 

O que pareceu ser um arranjo oportuno para todos, revelou-se outro desastre retumbante. Free Willy é muito violento, maltrata Salomé, não sai do Cabaré e vive ciscando as meninas enquanto a moça dança e serve clientes. Quando deixam o trabalho no inferninho, vão para o infernão do lar. Samária, que de boa samaritana não tem nada, é mandona, nervosa, viciada em assepsia e corticóides, exige que Maimônides tome vários banhos por dia e durma em quarto separado para não haver contaminação pelo hálito. Carinhos apenas esporádicos e mesmo assim com luvas descartáveis, máscara e álcool em gel.

Novo encontrão aconteceu no hospital. Maimônides terminou com Samária e foi ao P.S. devolver seus pertences. Viu Salomé tratando os ferimentos causados por Free Willy, apiedou-se da moça e levou-a para casa. Reataram a relação e combinaram conhecer o trabalho um do outro para melhor entender as respectivas particularidades.

Maimônides visitou o Cabaré, Salomé foi a um culto no Templo e os papéis se inverteram. Ele se encantou com a vida noturna, deixou de vender planos de saúde e aceitou emprego de Leão de Chácara. Ela ouviu o chamado e tornou-se monja no Templo da Salvação, mas combinaram que em casa as regras do trabalho não valem e a todo instante rola sexo, álcool e rock. Por causa da reconciliação dos filhos, Zanzibar e Abadia acabaram se conhecendo e se apaixonando. A dúvida existencial agora é se os jovens se tornaram “meio irmãos” e estariam vivendo no pecado. 

Como disse o poetinha, a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.

Laerte Temple
Laerte Temple
Administrador, advogado, mestre, doutor, professor universitário aposentado. Autor de Humor na Quarentena (Kindle) e Todos a Bordo (Kindle)

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