25.8 C
São Paulo
sexta-feira, 29 de novembro de 2024

O meu amigo Pintor

Uma análise das cores da saudade... Análise literária do emprego das cores diante da morte na narrativa O Meu Amigo Pintor, de Lygia Bojunga Nunes.

Análise literária do emprego das cores diante da morte na narrativa O Meu Amigo Pintor, de Lygia Bojunga Nunes

Celma Alves
Celma Alves

O Meu Amigo Pintor

Professora CELMA ALVES

AS CORES

A literatura e a psicologia embarcaram juntas em muitos textos em busca dos motivos que poderiam desencadear a ideação suicida. Este livro propõe ao leitor uma falsa correlação direta entre três situações sobre o personagem suicida, como tende a acontecer em outras histórias: a frustração política, que possivelmente foi responsável pela solidão do Pintor – já que ele queria ter uma relação amorosa que ele não conseguia conciliar com a sua militância, e com o coração saturado de desamor, decepção e arrependimento, ele não poderia ser um bom artista, já que o seu caos emocional era monotonamente repetido nos temas de suas telas, como sugerem as seguintes passagens sobre sua arte:

Uma vez ele [o síndico] disse que pintor que pinta mulher amarela é porque não sabe pintar mulher como ela é. […]

– Mas você é um bom pintor!

– Não! Não, eu não sou. Eu sei muito bem como é que se pinta; eu tenho técnica; eu trabalho e trabalho pra ver se dou vida aos meus quadros. Mas não adianta: são telas mortas.

– Foi apontando com o pincel: Olha. Olha! Olha!! Não dá pra ver? Não dá pra sentir que a minha pintura não tem vida? – E aí ele jogou o pincel na mesa com um jeito meio, sei lá, um jeito desesperado que, francamente, eu nunca tinha visto ele ter. (Bojunga, 1987, p. 36)

Assim, a sua má performance artística seria resultado direto das questões amorosas mal resolvidas e da sua obsessão por pintar a amada, Clarice, em todos os seus quadros. A presença de Clarice nos quadros outorga a ela a herança tanto do luto quanto da responsabilidade de desenrolar os nós do ímpeto de associar o amor como a motivação primordial do suicídio:

– Por que tudo que é mulher que você pinta tem um jeito igual? Ele continuou pintando; custou pra responder:

– Tem uma mulher que mora no meu pensamento, sabe; eu nem vejo quando ela sai da minha cabeça e entra na minha pintura. (Bojunga, 1987, p. 35)

Por muito tempo o suicídio foi concebido pelo imaginário social como uma das duas caras da moeda do amor. O amor era tomado como causa maior, como motivação plausível para a morte voluntária, como um motivo nobre. A construção desta ideia remonta aos pedidos de morte a Deus diante do amor não correspondido nas cantigas de amor galego-portuguesas da Idade Média nas quais podemos encontrar súplicas como por exemplo, “Deus, dai-me a morte” em Bernal de Bonaval; ou grandes obras literárias e paradigmáticas como Tristão e Isolda, na qual o único episódio suicida tolerado pelo efervescente julgamento moral e religioso em relação à morte voluntária da Idade Média era o amor; assim como em Romeu e Julieta. Amor e morte possuem uma longa trajetória comum na literatura universal. E, segundo o pai da psicanálise, Sigmund Freud, a situação amorosa pode compartilhar, de fato, similaridades com a situação suicida:

O mundo do suicida é supersticioso e cheio de presságios. Freud via o suicídio como uma grande paixão, como estar perdidamente apaixonado: ‘Nas duas situações mais diametralmente opostas, a situação de estar profundamente apaixonado e a situação do suicídio, o ego é assoberbado pelo objeto, ainda que de maneiras totalmente diferentes’. Como na paixão, coisas que parecem banais, maçantes ou engraçadas para quem está de fora assumem uma importância enorme para quem está sob as garras do monstro, ao passo que os argumentos mais lúcidos contra essa sua maneira de ver as coisas lhe parecem simplesmente absurdos. (Alvarez, 1999, p. 128)

O Pintor seria uma espécie de Romeu que teria morrido por não ter alcançado um final de contos de fadas com Clarice, personagem que se recusa a ser uma mera Julieta. Clarice é uma personagem muito forte que reivindica que o suicídio seja encarado sem eufemismos e sem proibição de faixa etária, que não seja velado por preconceitos e, sendo assim, tampouco admite a culpa que tentam lhe atribuir por conta da morte do seu ex-amor:

– A dona Clarice disse que o meu Amigo morreu feito todo mundo um dia morre. Não foi de propósito não! […]

Ela tinha que dizer isso – o vozeirão falou de novo – pra ninguém ficar pensando que foi por causa dela que ele se matou. (Bojunga, 1987, p. 19)

E a partir dessa pretensa ideia de “causa-consequência” é que Bojunga começa a demolir as paredes de preconceitos, de ignorância e medo que aprisionaram o suicídio ao silêncio claustrofóbico durante a história. A escritora utiliza o “motivo” do amor irrealizado para criticar a romantização do suicídio instituído a partir do paradigma de Romeu e Julieta já identificado e analisado por Alfred Alvarez no fragmento abaixo:

Costumava-se pensar, por exemplo, que o suicídio estava inseparavelmente associado ao amor juvenil. O paradigma era Romeu e Julieta – jovens, idealistas e apaixonados. Estatisticamente, no entanto, as probabilidades de Romeu e Julieta conseguirem pôr fim às próprias vidas são muito menores do que as do Rei Lear, que morreu de causas naturais, ou do Gloucester, que apenas tentou cometer suicídio. A incidência de suicídio bem-sucedidos aumenta com a idade e atinge seu pico entre cinquenta e sessenta e cinco anos de idade. Os jovens, em compensação, tentam muito mais; seu pico fica entre os vinte e cinco e os quarenta e quatros anos. Pode ser que os idosos tenham mais êxito porque são mais experientes e mais cuidadosos, enquanto os jovens agem impetuosamente, num acesso de emoção. (Alvarez, 1999, p. 90)

Entretanto, a impossibilidade de realização amorosa é só a segunda peça desse dominó que foi derrubado pelos dedos do destino e que resultou na morte do Pintor. A peça fundamental, a primeira a ter caído neste jogo de dominó, foi a decepção e os traumas políticos. Embora o livro tenha um certo tom lacunar a respeito dessa questão, sanar estas lacunas com a perseguição política durante a ditadura militar brasileira (1964-1985) é um caminho plausível. A profunda entrega do Pintor ao movimento militante contra a ditadura e a sua prisão teriam sido o estopim para levá-lo a uma vida solitária, de poucas conquistas e de insatisfação pessoal:

Outra vez, eu estava lá em cima jogando gamão e aí tocaram a campainha. Quando eu abri a porta dois homens disseram que eram da polícia e me mandaram ir embora: queriam ficar sozinhos com meuAmigo pra interrogar ele.Depois a gente ficou sabendo que o síndico tinha ido na polícia dizer que o meu Amigo estava morando aqui no prédio. (Bojunga, 1987, p. 18)

Sendo assim, o leitor é apresentado a todas as razões que, em conjunto, fizeram o melhor amigo de Cláudio se suicidar. E, diante dessa gama de possíveis explicações, o leitor fica diante de um quebra-cabeças cujas imagens formam um coro destoante composto por personagens secundários. Cada personagem secundário traz em seus discursos diferentes falácias sobre o tópico do suicídio e sobre a suicidiologia. As motivações apresentadas pelos personagens que precisam reagir ao suicídio do Pintor carregam em si a (falsa e equivocada) ideia de causalidade.

A sensação que o leitor tem é de um efeito dominó que gera uma pequena onda de culpados, de fatores que parecem aclarar a ação final, a última peça deste jogo: o suicídio. Enquanto ao Pintor são impostas explicações categóricas e palatáveis, estudos como os de Marcimedes Martins da Silva (2008) demonstram a ambiguidade e a complexidade como os caminhos possíveis para se compreender este fenômeno: o suicídio não é só preto e branco, há outras cores e tonalidades a nos atermos, como por exemplo a questão da relação e da comunicação: “O indivíduo se mata para relacionar- se comos outros e não para ficar só ou desaparecer. A morte é o único meio que o sujeito encontrou para restabelecer o elo de comunicação com os outros” (Silva, 2008, p. 15).

E a forma de comunicação do personagem suicida eram a arte e as cores de seus quadros, o que nos leva a pensar que seu destinatário era sempre Clarice. Se à Clarice é imposto o paradigma de Romeu e Julieta, a falácia sobre a romantização do suicídio pode ser percebida pela fala do síndico. O síndico é um personagem construído pela antipatia que a sua presença na narrativa causa ao leitor na narrativa e ele aparece em episódios que evidenciam sua falta de empatia e de solidariedade, como a denúncia do paradeiro do Pintor à polícia e a tentativa de culpabilizar Clarice pela morte do Pintor.

Outros personagens, como outra criança, Rosália, a filha do síndico, moradora do prédio no qual viviam Cláudio e o Pintor, servem como “espelhos” para refletirmos sobre como o suicídio é encarado pela sociedade na atualidade. Numa conversa, a garota, vizinha do térreo, diz a Cláudio:

– O teu Amigo foi pro inferno.

Levei um susto tão grande que a fala nem saiu logo. Ela disse:

– Ele se matou. E diz que quem se mata vai pro inferno. (Bojunga, 1987, p. 13)

Esta personagem nos adverte do maior preconceito que circunda a temática da morte voluntária: a condenação moral e religiosa. A complexidade do assunto e as diferentes implicações com as quais ele foi remoído ao longo dos séculos não permitem um consenso quanto ao suicídio, nem mesmo quando se trata de religião. Na Bíblia temos a presença de cinco suicidas: Sansão, Saul, Abimelec, Aquitofel e Judas Iscariotes. A Bíblia, além de não condená-los, absolve esses personagens de qualquer tipo de comentário laudatório ou injurioso ligado ao tema. Com isso, a Bíblia adquire uma postura de imparcialidade: “Nos primeiros anos de existência da Igreja, o suicídio era um tema de tal forma neutro que até a morte de Jesus foi considerada por Tertuliano –um dos mais ferozes Padres da Igreja– uma espécie de suicídio” para salvar a humanidade (Alvarez, 1999, p. 64).

A Igreja conciliava paradoxalmente a prática e a repulsa pelo suicídio, apresentando, quando conveniente, uma certa tolerância quanto a ele. Principalmente, porque o suicídio era procurado por muitos fiéis como uma espécie de martírio heroico e até mesmo como um desapego à vida terrena e uma supervalorização do que vem após a vida, o céu. A partir do século IV d.C., os suicidas começam a sofrer represálias e lhes são impostas condenações terrenas e até a danação eterna.

No século VI, a Igreja abandona a sua neutralidade e inicia o juízo de criminalização do suicídio através da extensão do sexto mandamento: “Não matarás”, resgatando a ideia original do suicídio como um autoassassinato. Contudo, o marco desta viragem é a fala de Santo Agostinho que preconizava o suicídio por respeito ao martírio da vida terrena para alcançar a elevação espiritual. Santo Agostinho percebeu as possíveis contradições passa a tratar do tema como “detestável”, “abominável”, “perversão”, considerando o suicídio como o maior pecado mortal, pois afrontaria a vontade divina. São Tomás de Aquino seguiu este mesmo pensamento e considerava o suicídio “um pecado contra Deus, a justiça e a caridade” (Álvarez, 1999, p. 81).

Assim, a primeira interdição do suicídio acontece por meio do viés religioso. A fala de Rosália, personagem de Bojunga, carrega toda uma tradição cristã que prega o suicídio como um pecado mortal cujo castigo é a ida ao inferno e o sofrimento eterno da alma do suicida. A Idade Média, o ápice do controle e do poder da doutrina cristã, condenou severamente os suicidas, com a exceção de dois: Tristão e Isolda. A história de Tristão e Isolda nos leva à segunda forma de tratamento do suicídio no livro de Bojunga: a romantização da morte voluntária x a sua naturalização.

Diante da exposição da citação de Freud a respeito da comparação dos estados amoroso e suicida e a falácia do suicídio amoroso analisada por Alvarez, falta-nos falar de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), escritor expoente do romantismo alemão que instituiu de uma vez por todas o suicídio por amor ao escrever a sua célebre obra Os sofrimentos do jovem Werther (1774).

O livro trata da desilusão amorosa entre Werther e Charlotte que desemboca no suicídio de Werther, história que se tornou um grande êxito literário e que também entrou para a história por ter gerado uma onda de suicídios inspirados no personagem. Este fenômeno ficou conhecido como “Efeito Werther” (Alvarez, 1999) e corroborou uma das falácias sobre o tema: a ideia do suicídio como algo contagioso. O livro fabricou um perfil de homem romântico sensível que foi reverberado na literatura desde aquela época até os dias atuais, e que incute a ideia do suicídio como resposta à irrealização amorosa, como no caso dos personagens de Pintor e de Clarice.Werther se mata após tomar conhecimento sobre o casamento de Lotte, assim como supostamente o Pintor teria se matado por não poder estar com Clarice uma vez descobre que ela é casada e tem um filho, ou seja, ela está impedida de viver um romance com ele.

Clarice é uma mulher importante na história de Cláudio e do Pintor, pois rompe com essa tradição romântica e não aceita a culpa que lhe é atribuída durante o desenrolar da narrativa. Para Clarice morrer por suicídio é a mesma coisa que morrer de causas naturais, como podemos inferir nos seus diálogos com Cláudio – quando afirma que o Pintor morreu “feito todo mundo morre um dia” ou quando, especificamente, referem-se à (não) culpabilidade de Clarice:

– É que… você disse que ele tinha morrido feito todo mundo um dia morre. Mas todo mundo não resolve morrer de propósito, resolve? […]

– Pra eu não ficar achando também que foi por sua causa que ele fez isso? (Bojunga, 1987, p .75)

Bojunga vai mais além e traz à sua obra uma terceira vertente pela qual o suicídio é equivocadamente tratado: a patologização. A discussão sobre o suicídio estar ou não atrelado à patologia é bastante intensa na psicologia. Esses estudos se esforçam cada vez mais em dissociar a morte voluntária de doenças mentais, na direção de entender o suicídio como um estado de obediência total à vontade de morrer, um momento de escolha:

Da discussão anterior surgiu o nosso segundo desafio na lida com aqueles que querem dar fim às suas vidas. Trata-se de como assumir uma atuação clínica que não se incline ante uma perspectiva moralizante, seja ela de ordem médica, jurídica ou sacerdotal. Essas ordens que se inserem no nosso tempo são características de um mundo onde ainda predominam as determinações cristãs, que na prática sacerdotal recebem a classificação de pecado. Na medicina, o suicídio é diagnosticado como um ato patológico. E na justiça, até pouco tempo, como crime. E como nós somos homens desse mundo, encontramo-nos totalmente tomados por essas determinações. (Feijoo, 2018, p. 175)

Os personagens que refletem essa discussão são os próprios pais de Cláudio:

Mas por que ele ia fazer isso? – eu perguntei. Porque ele estava doente, meu filho.

– Doente? A gente jogou gamão na véspera. Três partidas. Uma atrás da outra. E ele não tinha nada!

– Doente aqui – o meu pai bateu na cabeça -: só uma pessoa que está muito doente aqui faz o que ele fez. (Bojunga, 1987, p. 19)

Combater essa ideia de culpa e conviver com os “porquês” desse luto é um dos assuntos principais da história de Bojunga: aprender a lidar com a ausência da explicação. Um dos caminhos encontrados pela autora para expressar essa jornada em busca do entendimento e de superação do luto, na visão da criança, é a arte. Cláudio utiliza os ensinamentos do seu amigo Pintor para entender o seu interior através das cores, a forma de comunicação que ambos escolheram desde o início da amizade, quando o artista presenteia Cláudio com um livro de cores.

E não é somente a pintura que é oferecida como uma forma de lida diante da morte, mas também o teatro. Uma passagem muito relevante para entendermos o processo de luto de Cláudio, e também a procura da morte prematura do Pintor, é a cena em que, através do sonho da criança, Cláudio se vê encenando uma peça da escola na qual o pintor é um fantasma claramente despreparado para desempenhar este papel. Este despreparo evidencia o suicídio como uma morte antecipada, fora do script. E podemos ler o desenrolar da cena como um alerta para a prevenção do suicídio, ao entender o suicídio como um momento e como todos os momentos: ele é efêmero, passageiro:

– Distinto público, atenção: eu vou contar pra vocês a história deste fantasma. É uma história curta porque ele é um fantasma recém-morrido. Ele virou fantasma pelo seguinte: ele se enganou de tempo de morrer. Eu nunca pensei que isso pudesse acontecer. Mas aconteceu. Era pra ele morrer só quando ele fosse velhíssimo, mas ele era um artista, era um pintor (olha só pincel na mão dele), tinha a mania de viver pensando em cor. Acordava e, em vez de dizer feito todo mundo, eu estou triste, estou contente, ele falava:

hoje eu estou roxo

hoje eu fiquei tão amarelo!

hoje eu acordei roxo,

mas fui amarelando lá pro fim da tarde.

Para ele, a coisa que tinha mais cor-de-morte era nevoeiro. Às vezes, quando fazia céu azul de manhã mas de tarde começava uma névoa, ele dizia:

hoje fez vida de manhã,

mas agora tá fazendo

um pouco de vontade

de morrer

E então, um dia desses, fez um nevoeiro forte toda a vida. O Pintor espiava pela janela do apartamento dele, só via aquele nevoeiro tapando tudo que é cor e falava feito costumava a falar: hoje tá fazendo um pouco de vontade de morrer. Nevoeiro assim forte quase sempre passa logo. Mas dessa vez não passou: era um nevoeiro comprido, que durou a tarde toda e a noite inteirinha também. A toda hora o Pintor espiava a janela. E nada da vontade de morrer acabar. Foi por isso que ele se enganou: achou que a vontade nunca mais ia passar e então resolveu matar a vontade.Tipo de engano sem jeito: no dia seguinte amanheceu um céu azul bonito mesmo. Mas aí o Pintor já tinha virado fantasma. (Bojunga, 1987, p. 26)

Talvez essa seja a passagem mais significativa do livro O meu amigo pintor, pois refuta toda a falsa noção de causa e consequência das escolhas da vida do personagem suicida, afasta-nos das motivações e nos leva a pensar no suicídio como um momento, como um tropeção, como um relâmpago, um átimo. O suicida, portanto, seria aquele que não consegue enxergar o futuro dentro desse instante O suicida é o apressado, é o que fecha a janela, o que esquece de dar corda no relógio, esquece de abrir os olhos depois de acordar, é quem esquece que existe um amanhã.

Essa imagem é tão complexa e potente que a partir daí Cláudio pode entender o suicídio, pode processar a morte do seu amigo sem essa compreensão estar vinculada a um porquê, a uma justificativa. Então o suicida pode ser encarado como aquela pessoa que paga o ingresso de cinema e levanta no meio do filme. Num primeiro momento, nos sentimos incomodados por vê-lo passar pela fileira de poltronas e atrapalhar a visão da tela, pensamos que o motivo de ele ter levantado tem a ver com uma rápida ida ao banheiro, ou uma escapulida para ir comprar mais pipoca. Quando ele não volta ao seu lugar, somos tomados por uma curiosidade mais instigante do que o próprio enredo desse filme hipotético. “Por que ele foi embora? Por que não pode esperar até o fim do filme? Poderia ter ido embora durante os créditos, não? Ele pagou o mesmo preço do ingresso que eu e desistiu assim do filme?”. O suicida é aquele que não pode esperar pelo fim, pela morte, ele tem pressa.

A morte tem todas as cores da aquarela

Bojunga é uma dessas escritoras que conseguem conjugar outras formas de arte dentro dos seus livros. Suas obras dialogam com o teatro, o espetáculo circense, com a pintura, as artes plásticas e até mesmo com uma metalinguagem sobre o fazer literário. Se pudéssemos destacar uma arte preponderante no livro O meu amigo pintorseria evidentemente a pintura, por isso a escritora traz muitas questões e símbolos através do papel essencial das cores nesta obra.

Na história de Cláudio e o Pintor suicida são as cores as principais mensagens metafóricas e recheadas de poesia e que tentam passar ao leitor os sentimentos do ser humano diante da morte, do luto, do vazio, da existência, da vida. Bojunga orquestra uma grande sinestesia, um sentir em cores. Não é fortuito o fato de Cláudio começar a sua narrativa revisitando um livro sobre cores, presente de seu amigo pintor. O livro parece ser uma instrução muito básica sobre o princípio das cores na pintura destinada para iniciantes e curiosos. Contudo, durante a narrativa a associação de cores e sentimentos começa a colorir um quadro visceral cujo protagonista é o caos emocional no qual Cláudio se encontra. As cores passam a traduzir essências, sensações, estados anímicos: “Eu não sei se já nasci desse jeito ou se fui ficando assim por causa do meu amigo pintor, mas quando eu olho para uma coisa eu me ligo logo é na cor” (Bojunga, 1987, p. 8).

É interessante o fato dessa estratégia de Bojunga estar ligada a um traço linguístico, a uma série de expressões bastante consolidadas na fala e socialmente aceitas e reconhecidas. Expressamo-nos utilizando as cores como suporte, como se elas significassem mais do que tonalidades e estivessem de fato identificadas com a complexidade do existir e dos sentimentos que nos dominam. Sentimentos como raiva são expressos por frases como, “estou vermelho de raiva”, ou vontades e necessidades básicas por frases como “Estou verde de fome”. Essas expressões são conhecidas e aparecem nas nossas conversas cotidianas.

As cores que se destacam na narrativa são o vermelho, o amarelo, o branco e a cor-de-saudade, uma criação da imaginação de Cláudio. Todas essas cores ganham ênfase no momento da narrativa em que aparecem. O amarelo, a cor das figuras femininas que retratam Clarice na obra do Pintor, também a que representa a felicidade, o entendimento final de Cláudio sobre o processo e a aceitação de se conviver e se sobreviver ao suicídio de uma pessoa querida; o branco relacionado ao silêncio daquele relógio que parou de bater, já que não havia mais ninguém para dar corda no apartamento do artista; o vermelho utilizado para colorir a passagem na qual Cláudio revela a sua primeira paixão, a amiga da sua prima, Janaína; e por fim, a cor-de- saudade indefinível, intraduzível, profundamente subjetiva, que surge na descrição de uma imagem no álbum do Pintor. Cláudio interpreta a imagem através do simbolismo de um barco navegando num mar: partida, ausência, desconhecido, expectativa de retorno. Aqui, Cláudio resgata elementos da tradição de associar a passagem da vida para a morte como uma viagem de barco para uma terra desconhecida. Essa imagem pode ser encontrada na Antiguidade Clássica com a figura de Caronte, o barqueiro que leva as almas até Hades, ou na matéria de Bretanha com a morte de Rei Arthur e sua travessia de barco controlada pela fada Morgana, e até mesmo na literatura portuguesa – na obra que faz parte de uma trilogia de autoria de Gil Vicente, Auto da Barca do Inferno.

Segundo o Dicionário de Símbolos (1984) de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, as cores são passíveis de uma leitura mais ampla no sentido metafórico e simbólico, carregando em si diversas leituras e camadas de significados. Assim como o amarelo está comumente ligado à alegria e à vida, na história de Bojunga, o amarelo está ligado, também, ao entendimento de Cláudio sobre a situação de suicídio no qual está envolvido emocionalmente. Neste caso, o amarelo tem a ver com violência, com uma luz que cega, que transpassa e transcende o personagem: “Intenso, violento, agudo e até estridente, ou amplo como um fluxo de metal em fusão, o amarelo é a mais quente, a mais ardente das cores, difícil de atenuar e que extravasa sempre os limites em que o artista desejou encerrá-la” (Chevalier, Gheerbrant, 1984, p. 40).

O amarelo também foi a cor escolhida para representar a campanha nacional de prevenção ao suicídio conhecida como Setembro Amarelo. Segundo a Associação Catarinense de Psiquiatria, a decisão pela adoção dessa cor se refere ao suicídio de Mike Emme em 1994. Mike era um jovem americano que se suicidou enquanto dirigia um carro amarelo. No seu funeral, amigos e familiares de Mike abandonaram o preto como representação comum do luto e utilizaram o amarelo em fitas e cartões com mensagem de apoio às pessoas que poderiam estar passando pela mesma situação de Mike. O emprego do amarelo na obra de Bojunga, desta forma, não é ingênuo. As cores, de fato, contam uma história por si só.

Cláudio afirma que, com o passar do tempo, nasce um amarelo dentro dele. O amarelo é esse embate com a morte reconhecida como precoce. É esse atropelamento de Cláudio pela morte, pelo mistério, pelo silêncio e pela falta de justificativa do suicídio do amigo. O amarelo é a cor que ilumina todas as questões, mas que também as queima, tornando o suicídio um episódio que deixará profundas marcas de expansão de consciência e amadurecimento em Cláudio.

O vermelho passa pela intensidade, a cor do sangue, do fluxo, do que nos preenche. O vermelho, para Cláudio, vai ao encontro de emoções fortes como o amor. Tudo o que transforma, fere, incomoda ou assenta em seu coração, o personagem pensa tratar-se de vermelho:

Universalmente considerado como símbolo fundamental do princípio da vida, com a sua força, seu poder e seu brilho, o vermelho, cor de fogo e sangue, possui, entretanto, a mesma ambivalência simbólica desses últimos, sem dúvida, em termos visuais, conforme seja claro ou escuro. (Chevalier, Gheerbrant, 1984, p. 944)

Entende-se que, para Cláudio, o luto está mais próximo da cor branca do que da obviedade da cor negra. Isso porque o branco é a cor do vazio, é a cor que está numa tela que não foi tocada pelo pintor, é a cor de uma folha de caderno que não foi preenchida pelo escritor. O branco é a morte, o branco é aquele relógio que não tiquetaqueia mais, é a transição:

Assim como o negro, sua contracor, o branco pode situar-se nas duas extremidades da gama cromática. Absoluto – e não tendo outras variações a não ser aquelas que vão do fosco ao brilhante – ele significa ora a ausência, ora a soma das cores. Assim, coloca- se às vezes no início e outras vezes no término da vida diurna e do mundo manifesto, o que lhe confere um valor ideal, assintótico. Mas o término da vida – o momento da morte – é também um momento transitório, situado no ponto de junção do visível e do invisível e, portanto é um outro início. O branco é candidus – é a cor do candidato, e, daquele que vai mudar de condição. (Chevalier, Gheerbrant, 1984, p. 944)

Cláudio também está passando por uma transição quando se depara com a morte do amigo. Graças a Clarice, Cláudio pôde ter acesso a esse fenômeno essencial da vida humana: a finitude. Mesmo sendo uma criança, Cláudio pôde vivenciar e experimentar uma sinestesia que envolve entender a complexidade das emoções e da vida humana. Essa experiência não lhe é negada ou velada. E, graças a Lygia Bojunga e às palavras que compõem este livro, outras crianças também poderão contemplar assuntos tão pertinentes como a morte e o suicídio:

No caso específico do universo infantil, em que a percepção da realidade está em processo de sistematização, a literatura, por meio da fabulação, coloca diante do seu leitor um espaço que lhe possibilita compreender as relações humanas e as conjunturas sociais que integram de modo ainda inconsciente. Nesse sentido, a linguagem literária funciona como mediadora entre a criança e o mundo que a envolve. (Rocha, 2014, p. 9).

Bojunga subverte o senso comum ao transformar o suicídio em assunto para criança ao dirigir esta obra a este público de forma específica, direcionada. E insere a criança como agente da sua própria experiência e como um ser capaz de lidar com assuntos pertinentes ao seu desenvolvimento como cidadão e indivíduo, como um ser social que precisa lidar com as questões que envolvem a vida e as suas relações interpessoais.

– Então você não mentiu? então a notícia já não se espalhou e agora todo mundo já não está sabendo que ele se matou? […]

– Foi porque você acha que eu sou criança? – eu falei (depois que eu achei que ela não ia mais responder).

– Lá em casa eles acham que esse assunto não é coisa de criança. – Ela me olhou – você também é assim? foi por isso que você mentiu pra mim?

– Não. Eu tenho um filho da sua idade e converso tudo com ele.

– E de suicídio? Vocês também falam? Ela fez que sim. (Bojunga, 1987, p. 75)

Clarice tem nesta narrativa um importante papel de retirar os véus que velaram o tema da morte voluntária ao longo dos séculos. Clarice é a quem diz a verdade, Clarice não sussurra ou diminui a voz para dizer a palavra “suicídio” e quando diz, encara esse tipo de morte como qualquer outra morte, deixando o fenômeno do suicídio se despedir e despir de todos os preconceitos e condenações morais, religiosas ou clínicas. Clarice é o vento calmo que impulsiona aquele barco, aquela imagem que Cláudio descreveu como o mar cor-de-saudade, e que conduz tanto o entendimento da morte do Pintor como a lida do luto que pode começar numa tempestade de emoções e questionamentos que nos direciona, por fim, à bonança.

Considerações finais

Quando a literatura infantojuvenil surgiu, ela foi acusada de ser um gênero menor, refém do caráter pedagógico, esvaziada de qualidade literária. Com o tempo, a crítica literária e os estudiosos do tema têm combatido essa marginalização do gênero, permitindo sua maior penetração nos meios acadêmicos. Torna-se difícil compactuar com essas críticas do século passado quando estamos diante de obras como a de Lygia Bojunga. A escritora traz, em O meu amigo pintor, tópicos pertinentes à suicidologia e à formação da criança em situações intensas como a morte e o luto. Somado ao relevante trabalho feito pela escritora sobre um assunto tão impactante e complexo como o suicídio, é necessário citar o importante trabalho estético e artístico com a linguagem desenvolvido por Bojunga. Um misto de crueza, simplicidade, poesia, simbologia, abstração e imaginação compõe a linguagem deste livro.

Colocando em xeque a futilidade e a linguagem pueril que supostamente caracterizavam a literatura para crianças, Bojunga dilui as fronteiras entre os assuntos sensíveis considerados pertinentes, por vezes, a uma única faixa de idade. Assim, este livro resgata a função da literatura (e da arte) como mediadora entre o mundo, a sociedade e a criança sem subestimar o leitor infantil e juvenil e tampouco suas capacidades de percepção e compreensão do mundo ficcional e real apresentado pela literatura. Em O meu amigo pintor, a morte e o suicídio têm uma só cor nessa grande aquarela.

Bibliografia

Alvarez, A. (1999). O deus selvagem: um estudo sobre o suicídio. Companhia das Letras.

Bojunga, L. (2006). O meu amigo pintor [22.ª ed.]. Editora Casa Lygia Bojunga. [Original publicado em 1987]

Camus, A. (2004). O Mito de Sísifo. Editora Record.

Carballo, P. Z., Fernández Garrido, M. R.; Losada Friend, M., Navarro Domínguez, E. (2006). Estudios sobre literatura y suicidio. Alfar.

Coelho, N. N. (1991). Panorama histórico da literatura infantil/juvenil. Ática.

Coelho, N. N. (2000). Literatura infantil.Teoria – Análise – Didática. Moderna.

Eustáquio,A. R. (2013). O meu amigo pintor, de Lygia Bojunga: a assimilação da morte no universo infantil. Anais do CENA, 1(1). https://www.ileel.ufu.br/anaisdocena/wp-content/uploads/2014/02/cena3_artigo_8.pdf

Feijoo,A. M. L. C. (2018). Por um núcleo de atendimento a pessoas em risco de suicídio. Revista da Abordagem Gestáltica, 24 (2). http://dx.doi.org/10.18065/RAG.2018v24n2.6

Goethe, J. (2010). Os sofrimentos do jovem Werther. Clássicos Abril Coleções. [Original publicado em 1774]

Rocha, R. C. (2014). Com quantas cores se narra uma saudade? Revista Literatura em Debate, 8(14), 8-22. https://repositorio.unesp.br/handle/11449/125170

Sandroni, L. (1987). De Lobato a Bojunga: as reinações renovadas. Agir.

Silva, M. M. (2008). Suicídio-Trama de comunicação. Editora Scortecci.

Zilberman, R. (2003). A literatura infantil na escola. Global.

Celma Alves
Celma Alveshttp://WWW.RECANTODDASLETRAS.COM.BR/AUTORES/CELMAA
Professora de Língua Portuguesa, Literatura e Redação. Corretora em duas renomadas bancas de vestibular.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Leia mais

De onde vem a cedilha?   

TodEs, bem-vindEs e outrEs mais…

“Vou ir”! E isso existe?

Brasil-EIROS?

Patrocínio