Nem uma bituca, nem uma bituca! Oh, bom dia, senhora, por acaso viu um homem com um espelho na mão, andando por… Ei, espere! Ah! Então vá!
Bem, saudações, senhores, meu nome é Ofício. Pertenço a classe mais baixa da mendicância, passei por um longo caminho e árduo trabalho pra conquistar meu atual posto. Com o poder, meus amigos, vem grandes inimigos. Há um homem, não, digo, um espantalho! Hahahahaha, isso, um espantalho, um espantalho! Quase tão bem sucedido quanto eu, um pouco mais pobre, sim, mais pobre: ele anda mundo afora com um espelho na mão, dizendo refletir a alma de quem olhar para ele, suas vítimas preferidas são figuras públicas e qualquer tipo de gente intocável. E o que ele ganha com isso? Ora! Seu salário é o constrangimento!
Por que ele é meu inimigo? Hm, inveja, inveja de minha parte. Sim, eu sou o inimigo deste enredo, achei genial a ideia dele, genial!
– Com licença, senhor, viu um homem com um espelho na mão, passando por aqui?
– Vai perturbar outro, vagabundo! Estou trabalhando!
É isso, senhores, é isso que recebo por tentar proteger as pessoas de quem realmente elas são.
Quando sinto raiva e quero ofender alguém, me vem dois dos alvos mais fáceis: o Estado e Deus… falando em Deus, se Ele realmente existe e É quem É que dizem, Ele nos deve muita explicação, oh se deve!
Ah sim! A essa altura os senhores devem estar curiosos pra saber como vim parar em tal situação. Antes devo esclarecer que sou mendigo mas não sou indigente, eu tenho dinheiro, muito dinheiro, com certeza mais do que qualquer um dos senhores, só não uso por simples opção, prefiro revirar lixo, pedir esmolas, aceitar doações. Imagino que os senhores devam estar calculando o quão baixo isso seja, bobagem!
Eu sou herdeiro, desde cedo me ensinaram o valor do dinheiro, estudei nas melhores escolas e frequentei os melhores círculos sociais e graças aos bons exemplos que tive me tornei o que sou: um perdido tentando achar um outro perdido, se bem que eu estou muito bem achado. Já me servi de várias desculpas pra sustentar meu torto caminho, a primeira foi de que o sucesso é um osso muito concorrido, então optei pelo fracasso, que é menos concorrido e é onde as pessoas são mais humanas, e não, não me inspirei em nenhum movimento hippie ou qualquer rebeldia. O desejo de mendigar e principalmente peregrinar por aí sempre me atraiu e não, nunca romantizei a mendicância, muito pelo contrário, sempre a achei muito injusta, sobretudo pelo fato de que grande parte dos mendigos não nasceram pra isso. Mas eu, senhores, eu nasci com essa inclinação, com o dom para tal ofício, eu que devo me preocupar com possível romantização da parte de vocês. O que me empurrou ao meu sonho foi a notícia de que havia um louco, com certeza com a mesma inclinação que a minha e muito mais profissional, andando de lugar a lugar perguntando a todos pelo caminho se ao menos uma vez já se olharam pra um espelho sem ser com os
olhos dos outros. Me soou poético e filosófico, me encantei com isso e não deu outra, percebi que estava perdendo tempo, abandonei tudo o que eu tinha e saí por aí em busca do louco. Sinceramente não sei o que farei quando encontrá-lo, talvez eu quebre o espelho.
Achei razoável procurá-lo nesses lugares nobres, admito que me senti intimidado, haviam muitas pessoas célebres, de todo tipo, todo mundo parecia agir como se estivesse sendo filmado ou observado a todo instante, todos esboçando um ar de importância. Resolvi me aproximar de um senhor de alta classe que parecia estar desfilando por aquelas ruas que mais pareciam tapetes vermelhos. Me aproximei. Vi seu terno, seu vocábulo, seu lugar ornado na sociedade, me distanciei. Distante, olhei mais atentamente: vi seu polegar, ouvi seu urro e vi naquela face cobiçada um cadáver, então me aproximei de novo:
– Boa tarde, senhor, por acaso não viu passando por aqui um louco, vitimando pessoas com um espelho?
O homem se assustou ao me olhar, não o culpo, pois eu estava vestindo um manto, que eu havia improvisado com um cobertor, um chapéu de palha, óculos escuros e uma sandália velha de couro, era a roupa mais formal que eu tinha. Ele entrou rapidamente num comércio que estava próximo e avisou aos seguranças sobre um doido que estava perturbando os moradores. Com certeza ele estava se referindo ao homem do espelho, com certeza foi uma vítima dele, eu não tinha dúvidas que estava no caminho certo, então saí correndo pensando que eu o ia alcançar, e pasmem, senhores, não o alcancei, pelo menos naquele quarteirão. Naquela altura todos estavam comentando sobre o tal doido que estava vagando por aí e perturbando a paz dos moradores, todos viam, só eu não tinha chance de vê-lo.
Caminhando, avistei o que parecia uma chácara, um terreno enorme, havia lá um evento social, não sei do que se tratava, mas como a porteira estava aberta eu entrei, fui recepcionado por olhares grosseiros, que me acompanharam até chegar onde estava a maioria das pessoas. Nisso veio chegando um senhor sério, com um revólver na mão, caminhando em minha direção, todo mundo se afastou e eu logo disse:
– Senhores, sei que fui invasivo, mas é em nome do bem-estar público, há um louco a solta! Ele anda com um espelho na mão e usa de argumentos sem nexo para constranger as pessoas, os senhores já devem ter o avistado, pois todos andam falando, por isso achei que poderia ter alguém aqui que o viu e…
O senhor com tom firme disse:
– Eu vi!
Eu não pude conter minha empolgação e exclamei um:
– Eu sabia que estava no caminho certo! E então, por onde ele foi?
O senhor se aproximou mais de mim, com seu revólver na mão direita, apoiou seu antebraço por sobre meu ombro, com o revólver rente ao meu ouvido, mirando para trás de mim e disse:
– Foi por ali! Então ele atirou.
A vertigem soprou no meu ouvido como um apito de trem e eu cai desmaiado, talvez mais de susto do que de vertigem.
Acordei no hospital, já de noite, ouvia lá fora pessoas falando de um tal homem louco que estava ali. Mas ignorei, me virei, olhei para o vidro da janela e lá eu vi ele, o louco do espelho.
Autor:
Mauro Felipe Domingos da Silva