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domingo, 8 de setembro de 2024

49 – O sonho

– Estou falando, Tonhão… eu vi, ninguém me contou…

Tonhão se limitou a rir. Ria com vontade, alto… nunca ouvira história tão absurda quanto a que seu amigo estava lhe contando. E o pior é que Juca parecia levar a sério a patacoada que falava. Cada coisa… tudo bem, ele já tinha visto algumas coisas incompreensíveis… o saci… os sacis, por exemplo… era algo que ele levaria até o último de seus dias e não esqueceria… mas  uma pessoa derreter na sua frente, como se simplesmente não existisse mais? Era um bocado dificil de engolir…

– Está bem, está bem… vamos dizer  que acredito em você… então o  corpo derreteu assim, do nada?

– Sim… depois que o delegado cortou o pescoço dele…

– Tá brincando comigo… o delegado fez o que?

– Não, é sério… o delegado simplesmente cortou a cabeça do vivente…

– Juca, não acha melhor dar um tempo com a cachaça? Acho que é ela que está te fazendo falar besteira…

– Tonhão, eu te juro que tudo o que estou falando é a mais pura verdade…

– Acredito… acredito… mas vamos parar com a bebida e vamos para casa… a gente tem que pegar cedo, amanhã… eu, na mangueira… você, nos campos… vamos, amigo… eu te ajudo a caminhar…

 E lá se foram os dois pela estrada, abraçados para não caírem, trocando as pernas como bebês que estão aprendendo a andar. Depois de algum tempo de caminhada, Tonhão deixou seu amigo em sua morada e seguiu adiante, pois morava um pouco distante do local em que deixara Juca. A noite estava bonita, embora um pouco fria. A lua aparecia no céu em toda a sua majestade, gritando para o mundo que ela era a rainha da noite. Tonhão caminhou por mais de uma hora, até que finalmente chegou a sua morada. Como seu amigo, morava sozinho, portanto ninguém estaria esperando por ele. Por isso, quando notou uma luz clareando sua cozinha, todos os seus sentidos ficaram em alerta… por que alguém iria querer invadir a casa de um caboclo que não tinha nem onde cair morto? É bom frisar que Tonhão estava desarmado… como atualmente só lidava com o gado leiteiro, e tinham os vaqueiros que faziam a ronda por todo o perímetro da fazenda, Zacarias achou por bem restringir a distribuição de armas entre os peões, principalmente para evitar que ocorresse algum tipo de acidente… portanto, nesse momento, Tonhão contava apenas com a sua força física… que não era nada desprezível…

Pé ante pé, com toda a calma do mundo, Ele foi se aproximando de sua morada. Cauteloso, foi se esgueirando até as paredes da casa. Verificou a janela do quarto, estava fechada como havia deixado.  Forçou um pouco a porta da sala, esta  se abriu lentamente, quase sem nenhum barulho. Tonhão entrou devagar, pé ante pé, se  dirigindo à cozinha. Pela claridade que tinha visto do lado de fora, estranhou que estivesse tão escuro do lado de dentro. E estava escuro, tão escuro como o breu. Não havia luz alguma no recinto. Preocupado, Tonhão tratou de redobrar a atenção… de repente quem quer que tivesse invadido sua casa poderia ter percebido sua chegada e tratado de apagar a luz… mas não havia cheiro algum na cozinha, e o lampião, quando apagado, sempre deixava um cheirinho que denunciava que havia sido aceso… e neste momento, nada denotava que isso houvesse ocorrido. Cada vez mais intrigado, Tonhão  procurou ouvir o recinto, para tentar identificar qualquer anormalidade. Depois de alguns minutos tateando no escuro, e tendo certeza de que realmente estava sozinho no recinto, tratou de acender o lampião. E confirmou que realmente não havia mais ninguém além dele no local. Deu de ombros, pois tinha a mais absoluta das certezas do mundo que havia uma luz dentro de sua casa… mas, de repente, podia ser o efeito da cachaça… afinal, ele e Juca haviam exagerado um pouco na ingestão da água que passarinho não bebe… por via das dúvidas resolveu dar uma verificada geral em todos os cômodos… vai que… mas, como na cozinha, a busca mostrou-se infrutífera. Deu de ombros… dirigiu-se ao quarto, tirou as botinas e caiu em sua cama do jeito que estava… já caiu dormindo um sono pesado…

Tonhão viu-se caminhando por um campo verde, imenso. As árvores cresciam fortes e lindas, trazendo ao mundo a alegria dos pássaros que pousavam em seus galhos. Muitos animais corriam despreocupados pela campina, brincando e aproveitando a vida, sem se importar com a sua presença. Era como se ele não estivesse ali… afinal, em nada a sua presença interferia na rotina daquele mundo… ele se via como um piazinho… e estava caminhando para encontrar-se com seus pais, que a muito já haviam partido deste plano. E ambos o aguardavam, sorridentes, protegidos pela sombra de um ipê roxo, lindo como o Paraíso na terra… abraçou seus pais, sentindo o calor de seus corpos… e sentia-se seguro em suas presenças… a paz que tomava conta de seu ser era aquela paz de quando nada no mundo nos incomoda, onde tudo se encaminha para tornar a vida mais feliz… sim, estava feliz por voltar a correr livremente por aqueles pagos, junto a Natureza, enaltecendo o quanto a vida era bela… seus pais o acompanhavam com o olhar, sempre atentos para socorrê-lo em caso de ficar em situação de perigo… mas o garoto que ele voltara a ser não sentia nenhuma vibração maléfica no ar, e continuava a correr pelos campos perseguindo tudo e nada… correndo com e para a vida.

Tonhão aproximou-se de um regato que cortava a campina. A água transparente e cristalina permitia a ele apreciar os peixes nadando, caminhando pelo corpo do rio. Em determinado momento os peixes tornaram-se agitados e começaram a nadar velozmente, fugindo de alguma coisa que os assustara. A água começou a ficar com uma cor mais escura, como se a lama de seu leito tivesse sido revolvida. Finalmente, nada era possível avistar em suas águas, pois de límpidas tornaram-se sujas, mas tão sujas, que o cheiro nauseabundo que exalava deixava qualquer pessoa com o estômago embrulhado. Assustado com a transformação do rio, saiu correndo de volta para o local de onde havia saído… e reparou que estava tudo diferente do mundo que acabara de avistar….

O garoto correu como se mil demônios o estivessem perseguindo, pois de repente um terror inexplicável tomou conta de seu ser… sim, estava com medo, e queria voltar para a segurança do abraço de seus pais… mas… onde eles estavam?! Cadê o pé de ipê onde descansavam a poucos instantes atrás? Tonhão não conseguia entender… tudo estava mudando, tudo estava sumindo e um novo mundo emergia com uma força negativa tal que ele sentia seus ossos enregelarem…. quando o garoto não conseguiu mais localizar seus pais, pois eles simplesmente desapareceram, um sentimento de abandono tomou conta de seu ser… o menino sentou-se na grama, desanimado… não conseguia entender o que se passava ao seu redor! Fechou os olhos e começou a orar, não pronunciando as palavras com a boca, mas sim como o coração, como sua mãe um dia lhe havia ensinado… e então, lentamente, sentiu aquele aperto que oprimia seu peito pouco a pouco desaparecer, e foi despertando com aquela sensação de paz de espírito tão grande… pois sentia que havia alguém cuidando de sua alma…

Tonhão levantou-se da cama, foi até o oratório, acendeu uma vela e fez uma oração em intenção à alma de seus pais… enquanto orava, sentia uma paz imensa tomar conta de seu ser, e sabia que nada no mundo poderia derrubá-lo enquanto pudesse contar com a Proteção Divina… e a proteção de seus pais…

Terminou de orar, benzeu-se e retornou para a cama, onde desta vez dormiu sem sentir nenhum tipo de interferência sobrenatural… nada de pesadelos… apenas um sono reparador e tranquilo… 

Autora:

Tania Miranda

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