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domingo, 8 de setembro de 2024

47 – Enquanto o vendaval não chega…

– Tem alguma ideia de quando vão chegar?

– Não sei, Rosa… acho que daqui a uns três ou quatro dias….

– Estão meio demorados, não?

Graça, olhando pela janela, fitando o horizonte…

– É que a boiada tem quase mil cabeças… não é fácil conduzir um grupo tão grande, assim…

– E já sabem para onde eles vão?

Caminhando pelo quarto, sempre olhando o infinito através da janela, Graça responde para a amiga….

– Sim… mas vamos esperar que terminem a viagem, primeiro…

– E se o homem que procuram for embora direto da fazenda?

– E porque faria isso? Até onde ele sabe, não tem ninguém à sua procura…

– Eu sei, Graça… mas sabe como é… de repente…

– Menina, vamos pensar positivamente…. o Zé Ferreira vai pegar o dinheiro da viagem e vai vir gastar um pouco nos bares do arraial… de repente, pode até vir se hospedar aqui…

– E se ele reconhecer vocês?

– Difícil… a gente nunca se viu…

Rosa olhou surpresa para Graça. Não podia acreditar no que acabara de ouvir… como assim, elas nunca tinham se encontrado com o homem que procuravam? Se nunca o tinham visto, como é que iriam saber que o encontraram? 

– Rosa, eu sei no que você está pensando… porém a gente vai encontrar esse cabra.

– De que jeito? Vocês não sabem nem como ele é….

Graça deu de ombros… sim, era verdade… ela não fazia a menor ideia de como seria o homem que procurava… está certo, ele trabalhou como vaqueiro por algum tempo na Fazenda do Lagedo… mas nunca foi para a cidade ou qualquer outra fazenda dos arredores… foi então que Maria resolveu falar…

– A Graça nunca viu o sujeito, Rosa… mas eu o conhecia bem… fui várias vezes no Lagedo com meu pai, e era amiga da moça que ele matou… foi por isso que resolvi seguir a Graça nessa caçada… 

– Então ele te conhece…

– Acho que não… a gente via os cabras trabalhando na lida do gado, mas eles não tinham tempo prá ficar de prosa com a gente… além disso, ele era doido pela Rosinha, só tinha olhos para ela…

– Credo em cruz… ela tinha o mesmo nome que eu?

– Sim… ela também se chamava Rosa… coitada, morreu nova, e por uma fatalidade do destino…

As três ficaram em silêncio por alguns instantes. Baixaram as cabeças, como se estivessem fazendo uma oração… então Rosa volta a falar…

– É por isso que não gosto de festas… onde tem cachaça as coisas nunca acabam bem… ainda mais com esses cabeçudos indo prá festa armados…

– Concordo com você… mas fazer o que? O mundo é assim…

– Mas a gente tinha que tentar mudar isso….

– De novo eu concordo… mas mudar como?  Se a gente não conseguir educar as crianças prá pensarem diferente, nada vai mudar nessa vida….

E as três ficaram em silencio novamente, cada uma perdida em seus próprios pensamentos. Graça pensava na mãe, que deixara aos cuidados dos pais de Maria, Maria pensava em seus pais, irmãos e… até no Tonhão, dava para acreditar? A distancia estava fazendo com que a moça passasse a pensar naquele rapaz de tez escura e olhos puxados… sim, de repente a saudade atacava seu coração… e embora jamais tivesse se importado com o rapaz, nesses dias ele estava constantemente em seus pensamentos… Rosa pensava na vida que deixou para trás, e esperava jamais voltar a enfrentar uma vida tão difícil quanto a que levara… mas sabia que a vida é um constante vai e vem…. tudo o que ela podia ter era esperança…. e isso, ela tinha de sobra…. Graça, como sempre, é a primeira a quebrar o silêncio que tomou conta do quarto…

– Gente, vocês vão ficar entocadas aqui dentro? O sol está lindo, lá fora…

– E o que a gente pode fazer?

– Bom, primeiro acho que devíamos ir à Igreja… para agradecer tudo de bom que aconteceu com a gente até agora…

– E depois?

– Depois a gente pode passear pelos arredores… é bom para conhecer o lugar….

– Mas a gente vai armada na Igreja?

– É claro que não, né Maria? As armas ficam aqui no quarto…

– E se alguém entrar aqui e roubar elas?

– E quem vai querer roubar isso, meu Deus do Céu?

– Qualquer um, né, mulher… ou você acha que essas… coisas… são baratas?

Graça parou um pouco e ficou pensativa… Maria tinha razão… não era seguro deixar as armas no quarto da pousada… vai que alguém entrasse ali e…. mas ela não queria ficar trancada no quarto por dois, três dias… tinha que esticar as pernas… 

– Está bem, a gente não vai na Igreja, então… mas dá prá passear pelas lojas… e dá prá treinar mais um pouco com o laço e a boleadeira… 

– Então vamos….

E as três saíram em direção ao centro do povoado. Visitaram a praça da Matriz… Graça deixou suas armas com Maria e foi rezar um pouco… Rosa a acompanhou. Depois de algum tempo as duas moças voltaram, e Graça perguntou à amiga se ela também queria ir à Igreja, mas Maria declinou… não estava se sentindo muito religiosa, no momento…. querias apenas esticar as pernas, curtir a natureza…. as orações, as faria quando estivesse de volta junto aos seus pais…

As três amigas pegaram suas montarias e seguiram em direção à serra… queriam encontrar um local em que pudessem treinar o manejo de suas armas sem curiosos à sua volta…. mesmo porque ainda “apanhavam” para usar suas… ferramentas. Estavam conscientes quer, quando chegasse a hora, não haveria margem para qualquer tipo de erro. Por esse motivo resolveram treinar o mais que pudessem. Como sempre, as “ideias brilhantes” vinham sempre de Graça,. que convidou as amigas para… saírem no braço, como se estivessem brigando de verdade. Maria não gostou muito da ideia, Rosa também não… mas o argumento de Graça era imbatível… se não treinassem entre elas, como iriam se virar quando tivessem que enfrentar uma briga de verdade? A contragosto as duas acabaram acatando a sugestão da moça…  Rosa e Maria foram as primeiras a “sair no braço”, sendo que Graça ficava de lado, incentivando as amigas a trocarem socos. Quando achava que a “pegada” não estava boa, corrigia a postura das amigas….

– Rosa, nada de puxar cabelo… lembra que os cabras, na sua maioria, são carecas! Maria, usa as pernas… chuta a adversária, mulher! Rosa, tenta socar o rosto!… Gente, sem mordidas, só as mãos e pernas!  Maria, uma joelhada! Rosa, soca no estômago!…

 Uma meia hora depois as duas pararam o “treinamento”… ambas apresentavam vários hematomas e realmente estavam cansadas de lutar.  Quando Graça tentou fazer as amigas voltarem a se enfrentar, Maria se recusou…

– Graça, você é nossa amiga, ou amiga da onça? Desse jeito, quando o Zé Ferreira chegar, não vai nem precisar lutar com a gente… afinal nós estamos nos massacrando sozinhas… prá mim, chega!

E Maria recostou-se no tronco de uma árvore e fechou os olhos, para descansar da surra que havia levado de sua amiga Rosa… que estava em estado tão deplorável quanto ela…. Graça deu de ombros… afinal, as duas estavam certas… Recostou-se junto com as amigas e fechou os olhos, descansando enquanto se aquecia com o sol de outono, manso e tranquilo…

48- Adeus, Mané Da Tiana…

 Duarte estava sentado em sua cadeira, apoiando sua cabeça no antebraço, pensativo. Com certeza, as coisas não andavam bem na região. Encontraram o morto que sumira… sim, resgataram  Mané da Tiana… e agora ele realmente estava bem morto… o Delegado Vicente simplesmente cortou a cabeça de Manoel, sem nem pestanejar… quando se lembrava da cena que presenciara no dia anterior, Duarte sentia ânsia de vômito…. nunca pensou que iria assistir a uma cena como aquela… foi para isso que ficou tanto tempo nas carteiras da São Francisco? Caramba, ele havia se formado Bacharel em Direito com todos os méritos… resolveu ser delegado, para levar a Lei até os confins do sertão… e agora acontecia isso? Sim, ele estava inconformado…

Era pouco mais de duas da tarde, quando Juca chegou, todo esbaforido, acompanhado do Padre, que trazia todos os seus paramentos… queriam que Duarte os acompanhasse até os campos, pois tinham que mostrar-lhe uma coisa inacreditável… Vicente estava conversando com  ele, e resolveu que deveriam ir de uma vez, sem muitas perguntas… Duarte não gostou muito da atitude de seu colega, mas fazer o que? Como ele pertencia a uma autarquia Federal, estava acima de Duarte, que aceitou o… convite… e seguiu juto com o grupo para os pastos. Estavam ainda longe do local onde Juca deixara aquilo que um dia foi o Manoel, e o cheiro de carniça se espalhava, deixando o ar simplesmente irrespirável… Apearam ali mesmo, pois os animais se recusavam a seguir adiante…

O Padre pegou um rosário, um vidro de água benta e outros apetrechos em seu alforge… Juvêncio pegou um facão… pelo brilho, deveria ser de prata… e o colocou na cintura. Duarte não entendeu, de início, qual seria a intenção do colega… e provavelmente se soubesse, tentaria impedir, embora tivesse consciência de que dificilmente teria sucesso em seu intento…

O Padre foi se aproximando da massa disforme que um dia foi o Manoel…seu cheiro estava insuportável… crucifixo em uma mão, missário na outra, iniciando a ladainha. Todos acompanhavam a cantilena, naquele ritmo sonolento e maçante… Juvêncio acompanhava o Padre, segurando as contas do rosário. Além do Padre,  Juvêncio, Duarte e Juca, mais três caboclos foram convidados a acompanhar a pequena comitiva… (segundo o Padre, era necessário que o séquito contasse com sete membros, pois sete era um número místico e possibilitaria vencer as forças do mal que porventura tentassem sobrepor-se naquele local)…  a criatura protegia-se como podia dos raios de sol e dava para constatar o quanto eles o feriam. Mesmo estando coberto com a manta grossa que Juca lhe havia ofertado, estava agora em carne viva, pois sua pele havia se deteriorado. O olhar de dor e desespero da criatura era de cortar o coração… Duarte sentiu-se condoído com a situação daquele que outrora fora  o Mané da Tiana… mas nem o Padre, nem Juvêncio, pareciam se compadecer da situação da criatura. Já estavam perto do final do Rosário. Juvêncio, olhando para o alto, resolveu apressar o Padre, embora soubesse que não se apressa, nem se interrompe uma oração. Mas o tempo urgia, e em casos extremos…. O Padre fitou o horizonte e assentiu com a cabeça, concordando com  aquilo que Juvêncio havia falado sem dizer uma só palavra… é que a tarde estava caindo, e eles não queriam que a noite os surpreendessem com aquela criatura ao seu lado. Por ora ela estava imóvel, inofensiva… até certo ponto, pelo menos… mas quando a noite caísse e a sede de sangue tomasse conta daquele ser a luta seria terrível, mesmo com todos os paramentos bentos que estavam com o grupo. O Padre apressou-se a terminar as orações do Rosário, deu a Extrema-Unção para a criatura e saiu da frente, deixando Juvêncio livre para agir, que em um gesto rápido e preciso, sacou do facão, fazendo-o relampejar pelo céu, desferindo um golpe certeiro e mortal na altura do pescoço da criatura, que tombou sem vida aos pés do Justiceiro… o gesto pegou a todos os componentes do grupo de surpresa, e alguns deles passaram mal diante de tal cena dantesca.

O sol começou a se esconder atrás das montanhas. Os primeiros raios do luar ( se é que luar tem raio, é claro) começaram a banhar a terra… e o sangue escuro que escorria no local onde antes estava a cabeça da criatura começou a ferver… e o corpo começou a se decompor com rapidez tal que os homens não conseguiam acreditar no que estavam vendo. Em poucos minutos, apenas os ossos ficaram expostos no chão… e antes que estes também desaparecessem, Juvêncio e o Padre trataram de recolhê-los e colocá-los em uma caixa, que estava preparada justamente para isso. A ultima parte do corpo a ser recolhida foi a cabeça, que ficou guardada em outra caixa. Então acondicionaram as duas caixas no cavalo do Padre, voltaram a montar e retornaram para o vilarejo, fazendo antes uma parada no Cemitério, onde as caixas foram enterradas, em duas covas distantes entre si…

Juvêncio acompanhou o padre até a igreja, Duarte e os demais integrantes do grupo, ainda em choque com a cena que presenciaram, seguiram para a Venda do Seu Malaquias e tentaram esquecer as imagens bebendo um pouco de cachaça. Provavelmente ninguém realmente conseguiu esquecer, mas nenhum dos cinco disse nada sobre o ocorrido… Duarte passou a noite sem dormir, pois todas as vezes que tentava fechar os olhos para descansar, a cena da execução do estranho ser em que Manoel havia se transformado surgia em sua mente… e assim foi a noite toda, até o amanhecer, quando Duarte foi para a delegacia. Ainda estava pensando no ocorrido do dia anterior quando a porta da delegacia se abriu e Juvêncio entrou. Sentou-se em frente a Duarte, fez um cigarro, acendeu e começou a fumar. Por algum tempo ficou em silêncio, mas em dado momento resolveu falar com o colega…

– Você ainda está impressionado com a cena de ontem?

– E não era para estar? Você matou Manoel a sangue frio…

– Desculpe, Duarte, mas aquela criatura já não era a pessoa que você conhecia.

– Como não? Eu falei com ele…

-Enquanto ele estava vivo. Esqueceu que o Juca disse que atirou naquele ser à queima-roupa e não aconteceu nada com ele?

Duarte assentiu nervoso… Sim, Juca havia dito que tinha atirado no homem que um dia foi Manoel e nada aconteceu com a criatura…

– Seu Vicente, o que foi isso?

– Isso o que, Duarte?

– O que Mané se tornou…

– Ah… bem, é uma longa história…

– Acho que você pode me dizer, não?

– Bem… esta cidade está infestada por forças do além…

–  Huh? Você realmente acredita nisso?

– Você também deveria acreditar… Afinal, me viu matando um vampiro…

– Vai me dizer que…

-Sim… o rapaz foi atacado pela Mulher de Branco, como disse o Juca… e, por algum motivo, ela não o matou… preferiu transformá-lo em seu igual…

– Você quer dizer que aquilo…

-Sim, Duarte… felizmente para nós, ele ainda não havia se transformado completamente, pois ai não seria tão fácil nos livrarmos dele… a parte humana, que ainda existia, nos permitiu acabar com o seu sofrimento. Mas se a transformação tivesse sido concluída…

– Você já fez isso antes?

– Sim… mas o melhor que podemos fazer agora é nos esquecer do que aconteceu… e apenas lembrar como agir quando e se for preciso…

– Quando me lembro do olhar apavorado daquela criatura…

– É como te disse, Duarte… aquele coitado ainda era meio humano… nós lhe fizemos um favor… porque se a transformação estivesse completa…

Autora:

Tania Miranda

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