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segunda-feira, 9 de setembro de 2024

39 – A reunião

Duarte caminhava de um lado para o outro na sala da delegacia. Estava impaciente. Havia marcado uma reunião com Alberto e Alice, para conversarem sobre os últimos acontecimentos do arraial. Mas os dois estavam demorando muito para chegar… não, nenhum dos dois era policial, mas de repente eles poderiam ajudá-lo a ver aquilo que não estava conseguindo enxergar. Alberto era o médico da cidade, e por ser o único em um raio de cem quilômetros, era o faz tudo na área de medicina… desde partos até autópsias.  É claro que a maioria dos partos da região eram feitos por parteiras experientes, mas nas ocasiões que se exigia a presença de um médico, lá estava Doutor Alberto. Apesar da pouca idade já havia conquistado o respeito de seus concidadãos, e ninguém punha em dúvida sua capacidade. Alice era a professora da região. Respeitada por todos os seus alunos e os pais destes, conhecia a história do lugar como ninguém. Na verdade, a única pessoa que tinha um conhecimento maior que o dela sobre as histórias que circundavam o arraial era realmente Zacarias. Nem mesmo os religiosos, que tinham por obrigação conhecer todos os manifestos sobrenaturais, conseguiam abranger o conhecimento destes dois. Claro que cada um tinha seus seguidores… a professora geralmente era procurada pelas autoridades que precisavam embasar suas respostas pela ciência e cultura…  Zacarias, por quem desejava conhecer os segredos da terra…

Depois de alguns minutos, que para Duarte pareceram séculos, finalmente o casal de amigos chegou aos seu escritório. Alberto notou que seu amigo estava nervoso. Não via motivo para tal, mas entendia a pressão que o delegado sofria para resolver os casos que só aumentavam na região. Os papéis sobre os casos só se acumulavam em sua mesa. A quantidade de processos abertos era enorme. E Duarte não conseguia ver a luz no fim do túnel. Para complicar ainda mais, agora tinha esse delegado que veio da Capital para investigar os casos, e cismou que teriam que seguir uma linha que não tinha nenhuma lógica… investigar o sobrenatural…

Duarte sempre foi pé no chão. Mesmo quando Alberto lhe mostrou o cadáver que se mexia quando lhe extraiam a bala de prata que o havia matado, ele preferiu acreditar que eram espasmos involuntários de um corpo já sem vida, mesmo com todas as evidências provando o contrário. Ou seja, ele não acreditava na hipótese de que coisas do outro mundo estivessem invadindo sua região e cometendo crimes contra as pessoas. Mas chegou um momento em que, encurralado pelas evidências que se escancaravam à sua frente, não teve outro remédio que não partir para a investigação das “histórias que o povo conta”. Tinha que saber mais sobre alguns contos, para ver se conseguia encaixar algum deles nos casos em que estava trabalhando. E, para não cair em nenhuma esparrela, chamou o doutor, pois esse embasaria ou não as histórias que Alice desfilasse…

– E então, Alice?

– Então o que, Duarte?

– O que você pode me contar sobre as coisas que estão acontecendo por aqui?

– Que coisas?

– Essas… aparições! Que vem, matam e depois simplesmente desaparecem…

– Não faço ideia do que possa ser, essa é a verdade…

– O que você sabe sobre esse… “Papafigo”, por exemplo?

– Bom… é uma história que roda todo o nosso mundo, você sabe…

– Tudo bem, mas o que eu quero saber é se você acredita nisso ou não…

Alice deu uma gargalhada, olhando surpresa para o delegado…

– Está brincando comigo, não é?

Duarte, sério…

– Alice, nesse momento não tenho um pingo de vontade de brincar com quem quer que seja…

– Querida, o delegado realmente quer saber se você acredita na história ou não…

– Se eu… olha, Duarte… isso são histórias para assustar as criancinhas…. sabia que o Papafigo é chamado também de “o homem do saco”?

– Não, não sabia… o que tem a ver?

– Bem, reza a lenda que o Papafigo, ou o Homem do Saco, tem uma doença em seu fígado…. e a única forma de evitar a sua morte, é comendo o coração de uma criança…

– Mas não é isso o que está acontecendo por aqui, Alice… não são crianças que estão morrendo, são adultos… e ficam sem nenhum órgão dentro de seu corpo… 

– É, Alice, Duarte está certo… as vítimas foram evisceradas…  o problema é que elas não apresentavam nenhum ferimento condizente com a sua situação…

– Tem que ter alguma explicação lógica, Alberto.

– Se tem, não consegui achar…

– Tá… e o tal do Boi Tatá?… o que me diz?

– O casal de compadre e comadre, castigado por seu pecado?  O senhor não acredita nisso, não é mesmo?

– Olha, se acredito ou não, não vem ao caso… o que sei é que as mortes estão acontecendo… e o povo diz que são essas figuras que as estão cometendo…

Alice riu, novamente…

– Duarte, daqui a pouco você vai me perguntar sobre o saci…. homem, isso são apenas lendas, histórias que as pessoas contam na beira do fogão… nada disso existe, de verdade…

Alberto resolve intervir na explanação de Alice…

– Desculpe, querida…. mas alguma coisa existe, sim… Duarte, lembra do corpo que te mostrei no necrotério?

– O da bala de prata?

– Esse mesmo…

– O que é que tem?

– Ele simplesmente desapareceu do necrotério…

– Mas você não ia enterrar o corpo, homem de Deus?

– Eu ia… mas quando voltei da prefeitura, o corpo havia sumido… e a bala estava caída no chão…

Um ar de desânimo estampou-se no rosto de Duarte. Alice olhava incrédula para os dois homens. Não conseguia acreditar que eles estavam falando sério sobre fantasmas… isso simplesmente não existia… ou existia? Será que ela teria que rever seus conceitos?…

40 – Alice

Devido aos últimos acontecimentos… a reunião com Duarte, entre outros… Alice resolveu caminhar pelas ruas do vilarejo para pensar um pouco. Ela morava um pouco afastada do centro, entre a vila e a zona rural. Fazia já um par de anos que ela se mudara para aquela cidadezinha… Achou que seria bom para seu espírito ficar longe de cidades grandes. Primeiro, porque poderia trabalhar naquilo que mais gostava, que era pesquisar histórias e lendas do sertão. Pretendia escrever um livro sobre o assunto, e que maneira mais eficaz de se inteirar sobre este do que mergulhar de cabeça na sua fonte de inspiração? Alice recolhia todas as histórias que ouvia, e as anotava em um caderno só utilizado para esse fim. Era o único que nunca abandonava seus princípios, estava sempre disponível para aceitar seus registros sobre novas descobertas. Sim, a conversa a deixou um tanto abalada. Sempre considerou que as histórias que recolhia junto à população nativa fosse apenas isso… histórias de assombração, para assustar as crianças nas noites de lua cheia. E agora aparecia Alberto com aquela história… justo ele, uma pessoa esclarecida, culta, de boa educação, totalmente realista, sem nenhum viés sonhador… Alice esperaria a crendice  em qualquer outra pessoa, não nele. Como poderia acreditar que…. mas ele disse que tinha provas do que falava, e assim que ela quisesse, poderia mostrar-lhe todas as evidências colhidas…Alice estava tão absorta em seus pensamento, que não viu um cavaleiro que vinha em sua direção….por pouco o cavalo não a pisoteia. Com o susto, ela perdeu o equilíbrio e foi ao chão. O cavaleiro desmontou rapidamente e a socorreu…

– Está tudo bem, senhorita?

– Sim, não se preocupe… só perdi o equilíbrio….

– Posso te ajudar, de alguma forma?

– Fique tranquilo, não me aconteceu nada…

– Desculpe… é que a senhorita entrou de uma vez na frente de meu cavalo…

– Não se preocupe… nada aconteceu…

– Tudo bem… posso te pagar um café?

– Pensando bem… porque não?

E o cavaleiro acompanhou Alice pela alameda, conduzindo seu cavalo pelas rédeas. Amarrou o animal na porta da pensão, onde adentraram… sentaram-se próximos à janela e, como o salão estava vazio, logo Dona Adélia, a proprietária, veio atende-los.

– Tem um bolo de nata que acabou de siar do forno…

– A senhora pode nos servir… com aquele delicioso chocolate que só a senhora sabe fazer, por favor…

– E o cavalheiro?

– O mesmo que a moça, por favor…

E a mulher saiu em direção à cozinha, para buscar os pedidos…

– O senhor é o Delegado Federal, não é mesmo?

– Sim, sou eu mesmo…

– Eu estava conversando com o Doutor Duarte agora a pouco…

– E…?

– O senhor imagina que ele está tão desesperado, que começou a procurar explicação em fantasmas, nos casos em  que não consegue resolver?

-E o que a senhorita acha sobre isso?

– Loucura, não? como pode atribuir as mazelas do povo a…. manifestações sobrenaturais?

– A senhorita não acredita nessas coisas?

– Eu sou uma estudiosa. Procuro conhecer as raízes dos mitos do povo. Sabia que a aparência de alguns dos monstros mitológicos que tanto assombram as pessoas na verdade são associadas a algum tipo de doença?

– Mesmo?

– Sim… por exemplo… uma pessoa que sofra de lepra pode muito bem ser confundida pelos matutos como um… Papafigo. Acredita nisso?

– Sim, claro que sim… mas a senhorita está ciente que muita coisa inexplicável, do ponto de vista racional, acontece por essas bandas…

– Oh, casos sem explicação acabam sendo explicados quando a gente descobre o ponto que não havia percebido, ainda…

– Verdade?

– Sim, com toda a certeza…

– Moça, eu nasci no sertão.  Fui criado no meio do mato, até o dia que deixei meu povoado para ganhar o mundo…

– E foi bem sucedido, pelo visto…

Dona Adélia chegava até a mesa dos dois com uma bandeja com um bolo e uma jarra, além de dois copos…

– Espero que gostem… bom apetite!

– Obrigada! A senhora sabe que eu amo seus bolos…

Juvêncio se limitou a sorrir. Serviu a moça, serviu-se em seguida. Ficaram algum tempo em silêncio, apreciando o bolo e o chocolate. Em dado momento, Alice resolveu continuar a conversa…

– Juro que pensei que o senhor fosse pedir uma cachaça…

– Tem hora para tudo… um café… um chá… uma cachaça… agora era a hora do chocolate…

– Alberto não gosta muito de doces… nem de bebidas doces…

– Alberto é o seu namorado?

– Sim…

– Bom, ele não sabe o que está perdendo…

– Quer dizer que o senhor nasceu por estas bandas…

– Sim… e o destino acabou por levar-me à cidade grande…

– Engraçado… comigo aconteceu exatamente o contrário…

– É o destino…a gente simplesmente o segue… a senhora estava falando de monstros e pessoas doentes…

– Sim…

– Mas nem todos os casos dá para a gente classificar assim…

– Sério?

– Sim…  ontem, por exemplo, eu fiquei o dia todo examinando o rio…

– Achou alguma coisa interessante, lá?

– A senhora acredita em boi-tatá?

– A serpente de fogo?

– Bom, a que eu ví não era bem uma serpente…

– O senhor viu um?

– Sim, eu vi…

– O senhor disse que ficou o dia todo na beira do rio…

– Sim…

– E que à noite avistou a tal criatura…

– Correto…

– Com todo respeito, seu moço… acho que o senhor dormiu e viu aquilo que desejava ver….

– Você não acredita mesmo, não é?

– Até que eu veja uma criatura dessas com meus próprios olhos, não…

– Cuidado com o que deseja…

E aí Juvêncio resolveu considerar aquela conversa encerrada. Começou a puxar outros assuntos. Perguntou sobre o povo, o que ela sabia sobre a história do lugar…. quais eram as origens das famílias. e a tudo Alice respondia com prazer. Ela amava quando alguém lhe pedia para compartilhar seus conhecimentos. E era exatamente isso que aquele senhor simpático, sentado à sua frente estava fazendo. Pena que ele parecia um pouco crédulo demais… mas nada que afetasse a simpatia que Alice começou a sentir por ele.

Autora:

Tania Miranda

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