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domingo, 17 de novembro de 2024

Quem consegue entender as receitas culinárias?

Toda profissão tem seu vocabulário próprio, que poucos compreendem. Já ouviu falar em juridiquês, economês ou futebolês? Poucos sabem o que significam: “Data Vênia” ou “Cônjuge Varoa”; “Come-cotas” ou “Liquidez Seca”? Você consegue entender a narração: “Meteu uma caneta, depois uma carretilha, armou a bomba, mas deu só uma cavadinha na orelha da bola que foi parar na bochecha da rede”. Agora, o que não se justifica são os termos utilizados nas receitas culinárias. Na alta gastronomia, ainda vá lá. É coisa chique e precisa justificar o preço. Mas na culinária caseira, os textos deveriam ser de fácil compreensão para não confundir.

Anamarildo é um adolescente trapalhão e lesado. Demora para aprender, perde-se em detalhes, mistura tudo. Saiu ao pai, avoado e mané. Andou com 3 anos de idade, mas só aos 4 falou “papai”. Aos 5 anos já falava “papai” para a pessoa certa, mas por pouco tempo, pois Amarildo, o genitor, largou o emprego de soldador, fugiu com a vizinha e foi trabalhar como vigia num restaurante.

Na escola, Anamarildo era um fracasso e só não sofreu bulling por ser ótimo corredor. Ganhava todas as competições do colégio. Tinha pontaria certeira com o estilingue e era bom de briga. A diretora pediu tolerância aos professores, mas mesmo assim ele cursou cada série duas vezes. Alguns o aprovavam só para não tê-lo como aluno novamente: era chato, questionador, não aceitava as explicações e se confundia com a lição. O universo nunca deu a mínima para ele.

Bem apessoado, fez sucesso com as garotas por conta por ser atleta, mas nunca namorou. Tem dificuldade para entender sarcasmo, ler situações sociais e manter amizades. O jogo de cintura zero e a extrema sinceridade o tornam mais frágil que um pernilongo anêmico e sem asas.

Ana, sua mãe, quer descobrir uma vocação para ele. Ela trabalha o dia todo e deixa a comida pronta para o filho requentar quando chega do colégio. Ele gosta de decorar os pratos e postar fotos no Instagram, muitas vezes de cabeça para baixo. Descobriu que ele come comida fria porque não consegue “acender” o micro-ondas. Ana acha que o pai devia passar mais tempo com o garoto para ajudar a encontrar alternativas para seu futuro, mas o próprio Amarildo não tem futuro algum. Sua ausência preenche uma lacuna!

No dia do aniversário da mãe, ele voltou da escola pensando em surpreendê-la com um jantar requintado e escolheu pratos sofisticados na Internet: saladas, carne, peixe, pasta e sobremesa, mas tudo se complicou com a linguagem ilógica, estranha e difícil de entender. Parece que as receitas culinárias foram escritas de modo a não dar certo. Duvidam?

“Acrescentar uma pitada de sal, pimenta a gosto e marinar por uma hora. Fraldinha é boa opção. Selar a carne e estofar. Se preferir, pode saltear.”

Tudo errado, pensou Anamarildo. Peixe vem do mar, carne não! Por que marinar carne? Fraldinha? De qual tamanho? De pano ou descartável? Pitada é medida de volume ou de peso? Existe medidor de pitada? A gosto se escreve junto: Agosto. É para colar selo na carne? Estofar com penas ou palha? Saltear é ficar saltando?

“Raspe a bacia da batedeira com o pão duro para depois marmorizar.” Tudo bem, refletiu o rapaz. Nossa pia é de granito, que é parente do mármore. Deve servir. É pão de forma ou pão francês? Se não tiver pão duro, serve pão fresquinho? 

“Confira o ponto do macarrão para ficar al dente.” Tá legal, mas qual dente? Melhor esperar esfriar para por no dente, se não queimo a língua.

“Prepare a cama do peixe com um fio de azeite de oliva virgem, alho poró embebido em vinho decantado e com notas de canela.” Caramba! Peixe na cama? A mãe não vai gostar do cheiro! Onde troco meus reais por notas de canela? Tem de cantar para o vinho? Fio de cobre? Qual tamanho? A Olívia é virgem? K K K. Não conhecem a peça. Só rindo mesmo!

“Leve o creme brûlée ao fogo em banho maria e depois use o maçarico para dar consistência.” Doideira total. Dar banho no creme? Vai apagar o fogo. Quem é Maria? Acho que tem um maçarico na caixa de ferramentas do pai.

Quando Ana chegou do trabalho, a bagunça era total: peixe na cama, lata de creme de leite na banheira, fralda descartável, palha, selos postais, rolo de fio, o maçarico de solda aceso e o filho jogando água para apagar o fogo na toalha. A massa de bolo na pia parecia um corpo tirado do rio, Em vez de brigar, ela se emocionou com a iniciativa de Anamarildo, que só queria agradá-la. Mãe é sempre mãe!

  • Por que não pediu comida no restaurante, querido?
  • Eu pedi mãe, mas o atendente disse que o auxiliar de cozinha faltou, o dono colocou meu pai para ajudar e o restaurante pegou fogo.
  • Entendi!

Mesmo assim, o jantar de aniversário aconteceu. Sobrou um pouco de pão, meia garrafa de vinho e Ana conseguiu fazer algo com a carne e o creme de leite. Anamarildo disse à mãe que descobriu sua vocação: vai reescrever as receitas em linguagem que os cozinheiros iniciantes compreendam. Acha que vai enricar!

Laerte Temple
Laerte Temple
Administrador, advogado, mestre, doutor, professor universitário aposentado. Autor de Humor na Quarentena (Kindle) e Todos a Bordo (Kindle)

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