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terça-feira, 27 de agosto de 2024

O boiadeiro

A garotada estava em polvorosa. E não era para menos. Afinal, pela nuvem de poeira levantada no horizonte, uma grande comitiva se aproximava. Tinham ouvido falar que um boiadeiro famoso estava conduzindo um rebanho para a Santa Helena, e ficaram curiosos. Afinal, caminhar pelas planícies dias e dias, tocando o gado, tomando cuidado para não perder nenhuma cabeça não era um trabalho fácil. E a garotada ficava se imaginado fazendo parte da comitiva, vivendo em sua imaginação as aventuras que certamente os boiadeiros viviam todos os dias….

Pela distancia da poeira levantada, ainda faltava um bom par de horas até chegarem na fazenda, mas os garotos já se perfilavam por toda a cerca. Sabiam que, quando o gado chegasse na divisa da fazenda teriam que se cuidar, porque acidentes com os animais poderiam ser fatais….

Depois de muito tempo, começaram a ouvir, bem ao longe, o lamento característico de um berrante….era com certeza o boiadeiro à frente da manada, conduzindo-a para seu destino. Vinham num passo lento, tão lento que a garotada já estava até desanimando de ficar ali esperando a chegada da comitiva. Alguns desistiram e se foram, afinal o sol começava a se esconder atrás das montanhas e o dia começava a ceder seu espaço para a noite que se aproximava. Então a espera dos garotos que resistiram bravamente foi compensada. Finalmente se ouvia em alto e bom som o clarim das alterosas, guiando o grupo de animais lentamente em direção à entrada da fazenda.

Alguns garotos se apressaram a abrir a porteira para que a comitiva pudesse continuar sua jornada sem necessitar fazer mais uma parada. Depois de quase uma hora com aquela onda bovina passando pelo riacho que se tornara a estrada, a ultima rês foi tocada junto com o resto do rebanho e o cavaleiro que fechava o grupo jogou algumas moedas para os garotos como forma de agradecimento. Mas eles estavam tão entretidos acompanhando o caminhar das reses que levaram algum tempo até que descessem dos mourões que faziam a cerca do local e começassem a dividir o tesouro que generosamente os boiadeiros haviam lhes ofertado.

Juca e mais alguns vaqueiros cavalgaram em direção aos boiadeiros para ajudá-los a guiar a manada para o pasto reservado a estes. Havia um riacho límpido e cristalino que cortava todo o pasto, além de cochos onde os animais, cansados da viagem, encontrariam sal e gomos de cana para seu deleite. Depois de uma hora, mais ou menos, tudo estava ajeitado nos conformes, e todos se dirigiram para a casa grande, onde finalmente apearam e foram recebidos pelo senhor Nardi, proprietário da Santa Helena.

– A viagem foi tranquila?

– Com a graça de Deus, seu Nardi…. Acho que foi a viagem mais tranquila que a gente já enfrentou…

– Fico feliz… quantas cabeças de gado chegaram?

– Duzentas… perdemos trinta cabeças durante a viagem… duas abatemos para nosso consumo, cinco foram atacadas por onças, três a gente perdeu para as piranhas numa vazante por onde passamos e as outras vinte se desgarraram do grupo e não deu para encontrar…

– E ainda diz que a viagem foi tranquila?..

– Todos os vaqueiros estão firmes e fortes. Só isso já me faz sentir que essa viagem foi tranquila, calma…

– Mas chegaram só duzentas cabeças… vocês perderam trinta do grupo…

– Com todo o respeito… o senhor pagou por duzentas cabeças, e é o que está recebendo. Não entendo porque está questionando…

– Olha, eu…

– Deixa eu fazer uma pergunta… o senhor já tocou gado, alguma vez em sua vida?

– É claro que não… pra isso eu tenho os vaqueiros, que entendem do riscado…

– E do que que o senhor entende?

– De lavoura, meu filho. Quando cheguei aqui e vi esse mundão de terra, já fiquei imaginando o arroz, o trigo, as batatas que eu iria plantar aqui…

– E acabou virando um dos maiores criadores de gado da região…

– E acabei virando criador de gado… mas foi por acaso… o antigo dono da parte onde crio gado estava bem velhinho e não tinha família… um dia me apareceu com uma proposta que não deu para recusar… me vendeu tudo de porteira fechada e com o dinheiro da venda disse que iria voltar para sua terra, que não queria morrer aqui…

– E ele era de onde? Sabe que não sei, meu filho? Acho que era espanhol, mas não tenho certeza…

– O senhor é italiano…

– Filho de italianos… nasci nessa terra abençoada, mesmo…

– Aqui, mesmo?

– Sim… meu pai fundou a Santa Helena… quando chegou aqui, isso era terra de bugre! E o senhor, seu Cardoso?

– Eu o que?

– É de onde?

– Bom, eu sou do mundo….não tenho parada certa, não por enquanto….

– Então gosta de viajar pelas estradas…

– Sim… e ter o céu por cobertor… é uma vida boa, até hoje, pelo menos… sei que um dia vou acabar criando raiz em algum pago… mas ainda não chegou a hora de pendurar a guaiaca…

– Falando em guaiaca… vamos acertar seu pagamento… acho que seu pessoal está doido para receber, não?…

– Acho que sim… quantas cabeças vamos levar pra Santa Rita?

– Trezentas… e não pode perder nenhuma…

– Não se preocupe… vão chegar todos inteiros e em perfeito estado…

– Mas vocês perderam trinta cabeças quando vieram pra cá…

– Nós perdemos… mas o senhor comprou duzentas reses e recebeu duzentas reses… não teve prejuízo nenhum.

Nardi balançou a cabeça. Não tinha como argumentar contra o boiadeiro, pois ele estava coberto de razão. As perdas durante a viagem faziam parte de um contingente extra que os boiadeiros tocavam como uma reserva de segurança, pois muita coisa poderia acontecer durante as longas viagens que tinham que fazer pelas estradas. E tinham que dar graças a Deus quando não enfrentavam ladrões de gado, que muitas vezes emboscavam e matavam os componentes de uma comitiva, para subtrair a manada…

– Vão descansar alguns dias na fazenda?

– Depende da pressa do senhor em entregar a encomenda. Se a gente puder descansar uns dois dias, ficamos muito agradecidos… se não for possível, não tem problema… a gente pega a estrada amanhã mesmo…

– Pode ficar tranquilo… O gado só é esperado lá em Santa Rita daqui a uns quinze dias… acho que dá pra fazerem a viagem em uns oito, não dá?

– Dá… mas como vão para o matadouro, não é bom que percam peso, então a gente vai mais devagar… descansamos amanhã e na madrugada seguinte estamos pegando estrada…

– Agradecido…

– Bom, então vou me recolher, pois a caminhada foi cansativa… até mais ver, seu Nardi…

– Até mais ver, seu Cardoso…

E Zé Cardoso se dirigiu ao alojamento onde ele e seus camaradas iam passar a noite. Ainda estava um bocado longe, mas já sentia o cheiro da comida que Chiquinho, o cozinheiro da comitiva estava preparando. O cheiro bom aumentava ainda mais sua fome…

– Não basta ser bom com o laço e a boleadeira, ainda tem que ser bom também com as panelas, vivente?

– A gente precisa comer bem, patrão… como dizia meu pai, saco vazio não para em pé…

– Bom, então vamos comer e dormir… amanhã a gente descansa e depois de amanhã bem cedo pegamos a estrada…

E assim, fizeram sua refeição, tocaram um pouco de viola e cantaram, para espantar as tristezas da vida, e finalmente ajeitaram seus pelegos, e foram descansar para recuperar as energias perdidas durante o dia.

18 – Na beira da tuia

 Embora estivessem de viagem marcada para o dia seguinte, Zé Cardoso e seu grupo resolveram participar de um arrasta-pé que haveria em uma fazenda próxima de Santa Helena. Juca foi convidado para tocar na festa, e convidou a comitiva para se divertirem um pouco, antes de pegar a estrada novamente. Afinal, a vida na lida de gado não era fácil, e oportunidades de se distrair eram escassas, uma vez que o vaqueiro tem que  estar sempre atento, para não ser pego de surpresa pelas circunstâncias que podem ocorrer durante a viagem. E lá pelas tantas, vestindo a melhor roupa que tinham em seus alforges, cabelo penteado, bota lustrada, lá foram eles, acompanhando o pessoal de Santa Helena para se divertir. Claro que carregavam suas armas consigo, afinal não era muito inteligente deixá-las no acampamento…  vai que alguma dessas armas resolvesse passear enquanto seu dono estivesse fora… era raro acontecer de alguém subtrair pertences de outros, mas facilitar a vida dos amigos do alheio nunca foi uma boa ideia. E assim lá foram, estrada afora, brincando, fazendo piadas e cantando também, porque não? Em dado momento da caminhada, Zé Cardoso puxou de seu violão e, mesmo montado, começou a tirar umas notas do instrumento. Vendo isso, Juca não quis ficar para trás, e sacou de sua viola e começou a acompanhar o amigo. Logo os dois estavam entoando canções enquanto cavalgavam junto com seu pessoal.  Claro que tal proeza exigia uma destreza extra dos dois tocadores de viola, mas anos de experiência na estrada facilitavam seu feito…

Embora nunca tivessem cantado juntos antes, seu dueto era perfeito. E os amigos que os acompanhavam de vez em quando faziam coro às vozes dos dois. Depois de umas duas horas de cantoria finalmente chegaram na Fazenda do Lagedo, onde a festa aconteceria. A turma de mais ou menos uns trinta cavaleiros foi seguindo em direção à tuia, onde a festa aconteceria. Tonhão foi o primeiro a apear, seguido por seus companheiros. Seu Leôncio, o anfitrião, já os levou para comer e beber alguma coisa, enquanto ouviam os violeiros que já estavam animando a festa. Claro que Zé Cardoso e Juca se aproximaram dos cantadores, com seus instrumentos já afinados… afinal, vieram cantando pela estrada toda. Chiquinho, o cozinheiro, havia trazido sua sanfona e se preparava para acompanhar os amigos em suas performances. Quando viram o sanfoneiro chegando, a dupla que estava cantando o convidou para acompanhá-los em uma canção. Chiquinho não se fez de rogado e executou em seu instrumento “Saudade de Matão”, uma de suas músicas favoritas. A dupla não fez feio, seguindo o sanfoneiro em seus voleios com o instrumento. Aliás, o violeiro também fazia misérias com seu ponteado na viola, não ficando a dever nada ao sanfoneiro. E a turma que estava na tuia para dançar estava simplesmente maravilhada com Chiquinho e seu instrumento.

Rosinha, a filha de Leôncio, se encantou com Zé Cardoso. Afinal, ele era um homem bonito. Alto, cabelos começando a pratear, olhos de um negro profundo como a noite sem luar, riso fácil, mas um rosto que podia mostrar-se duro, dependendo da situação. E tinha uma voz que fazia as moças sonharem com o paraíso, quando começava a cantar. Zé notou o interesse da moça. Não estava interessado em alvoroçá-la ainda mais, mas não custava cantar algumas modas para homenagear a pequena, não é mesmo? E, acompanhado por Juca e Chiquinho, desfilou valsas, toadas, cururus, todas falando de amor e paixão, enquanto fitava a pequena, que se sentia a musa inspiradora de seu pretendido. Sim, a festa estava boa. Mas tudo que é bom…

Zé Ferreira, um dos vaqueiros de Lagedo, era apaixonado por Rosinha e, embora ela não desse a menor importancia para ele, embora jamais tivesse dado a menor abertura para que este se sentisse como qualquer coisa sua, o vaqueiro não permitia que ninguém se aproximasse da garota. Gênio violento, possessivo ao extremo… aliás, esse era um dos motivos que faziam com que Rosinha não quisesse nada com o rapaz…. Zé Ferreira ameaçava qualquer um que tentasse se aproximar da garota. E não viu com bons olhos a troca de olhares entre sua amada e o violeiro recém chegado. No começo ainda ficava em seu canto, remoendo os ciúmes que o corroíam por dentro. Mas conforme a noite ia avançando e o teor alcoólico em seu sangue ia aumentando, a fúria contra aquele violeiro abusado, que oferecia canções à sua amada, ia crescendo. Até que…

Sem nenhum tipo de aviso, sem dar o menor sinal de sua fúria, em certo momento Zé Ferreira avançou contra Zé Cardoso e jogou um copo de cachaça em seu rosto. Cardoso não esperava por isso e ficou sem reação por alguns instantes. Ato contínuo, Ferreira desferiu um soco contra seu adversário. E aí a confusão começou. Ninguém sabe exatamente o que aconteceu durante a confusão. O que contam é que, depois de algum tempo, quando todos estavam se engalfinhando pelo espaço onde todo mundo deveria estar se divertindo, um estrondo semelhante a um trovão se ouviu. Todos ficaram paralisados na hora.  E o corpo sem vida de Rosinha estava caido no chão, e Zé Ferreira, incrédulo, olhava para todos sem compreender exatamente o que acontecera… em sua mão, o revolver que acabara de tirar a vida da menina que tinha tantos sonhos a realizar e cujo único pecado, nessa noite, foi se encantar pelas canções de um violeiro desconhecido… 

Autora:

Tania Miranda

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