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sábado, 27 de julho de 2024

A transparência da estupidez

Três alunas do curso de biomedicina, de uma universidade privada da cidade de Bauru, São Paulo, viralizaram na internet após gravarem um vídeo no qual zombavam de uma colega de turma de quarenta anos. Entre risadas maldosas diziam: “como faz pra desmatricular um colega de sala?”, “Ela tem quarenta anos, era para estar aposentada”, “Não pode mais fazer faculdade” e mais. Familiares da mulher saíram em sua defesa, e mesmo a faculdade manifestou-se dizendo que não compactuava com atos preconceituosos. Acusadas de “velhofobia”, (ou, melhor, etarismo), uma das jovens se desculpou dizendo que não teve intenção de praticar qualquer ato de preconceito ou de humilhação. Alegou que fez uma brincadeira infeliz que saiu de proporção. O videio é desprezível, indubitavelmente, mas há na resposta da jovem um elemento de verdade que caracteriza a relação que temos hoje com as mídias sociais.

“A internet é o tecido das nossas vidas”. É com essa frase que o sociólogo Manuel Castells abre seu clássico livro A Galáxia da Internet, de 2001. De lá pra cá, esse tecido tornou-se uma grande e complexa tapeçaria. Com o advento da internet 2.0, dos dados móveis e das redes sociais digitais, nossas vidas tornaram-se inerentemente conectadas ao mundo virtual, fazendo dele parte indispensável do nosso dia a dia. As redes sociais digitais tornaram-se verdadeiras mídias sociais. Através de smartfones procura-se aliviar a burocracia, facilitar a alimentação, o lazer, o relacionamento, a saúde… diversas necessidades básicas são capitalizadas através de aplicativos. E isso tem, como é de se esperar, um impacto sociocultural considerável. Como diz Clay Shirky em A Cultura da Participação (2010), “mídia” é o “tecido conjuntivo da sociedade”, isso é, a forma pela qual os cidadãos se informam e se comunicam. Tradicionalmente essa comunicação se dava verticalmente (tendo um ponto de emissão e diversos de recepção, ou seja, de “um” para “muitos”. Com pouco ou nenhum feedback do receptor para o emissor), esta seria a lógica por trás dos “meios de comunicação de massa”, como jornais, rádio, televisões e mais. Porém, a internet popularizou outra forma de comunicação, a horizontal (de muitos para muitos e com fácil comunicação entre emissores e receptores). Mas, mais que isso, popularizou a “comunicação pessoal” e o que Castells chamou de “autocomunicação”.

Em 2022 um levantamento elaborado pela empresa NordVPN descobriu que o brasileiro passa, em média, 91 horas por semana online. Isso se dá pelo fato de que praticamente tudo é hoje atravessado pela internet. O trabalho (em especial quem trabalha em Home Office), o lazer (com jogos online, serviços de streeming e mais) e mesmo a comunicação direta, que até pouco tempo atrás era mediada pelo telefone, mas não pela internet. Outra pesquisa, essa elaborada pela Comscore, revelou que em 2021 os usuários das redes sociais (Twitter, Facebook e Instagram) no Brasil somaram 29,8 bilhões de interações. O que equivaleria a 81 milhões de interações por dia. O brasileiro é extremamente ativo nas redes sócias, para o bem ou para o mal. Como observou Zygmunt Bauman, em seu póstumo Nascidos em Tempos Líquidos (2017), os seres humanos do século XXI vivem em dois mundos, um mundo um “on-line” e um “off-line”. Por mais solitários que estejamos no mundo on-line, nunca estaremos efetivamente sozinhos. A premissa desse mundo é justamente manter conexões (diretas, indiretas, fortes ou não). Nele somos incentivados (até coagidos) a projetar nossas formas e conteúdos, maquiando para o mundo virtual “imagens do eu”. Tendo ainda a ilusão de que estamos em pleno controle dessas imagens, formas e conteúdos que compartilhamos. É nesse princípio que o filósofo Byung-chul Han fala em Sociedade da Transparência.

Han afirma, em Sociedade da Transparência (2017), que “tudo o que repousa em si mesmo, que se demora em si mesmo passou a não ter mais valor, só adquirindo algum valor se for visto”. Remodelando a máximo “quem não é visto não é lembrado”. A força das mídias sociais em transformar tudo em conteúdo (e não me refiro às infindáveis reclamações de produtores de conteúdo e influenciadores digitais) nos leva a uma exposição que é tanto irrelevante quanto infinita, sendo apenas contabilizada em interações que são, na sua grande maioria das vezes, protocolares. Ai está a transparência. Conforme Han: “As ações se tornam transparentes quando se transformam em operacionais, quando se subordinam a um processo passível de cálculo, governo e controle”. Um vídeo curto se queixando de alguém que não catou o cocô do cachorro, ganhando certos views e seguidores; um vídeo com sua opinião polêmica sobre o novo filme ou episódio de série, likes, views e seguidores; Uma foto do por do sol, do café da pausada, da feira, do pastel, do almoço, no espelho do shopping, da roupa nova, do engarrafamento, da chuva… Tudo pode ser compartilhado, contabilizado e instrumentalizado. “A transparência é um estado de simetria”, as mídias sociais nos criaram uma forte sensação de comunidade, proximidade e (ironicamente) intimidade. E como isso se relaciona com o caso das jovens que praticaram etarismo com uma colega de turma? Voltando a Han: “A sociedade da transparência elimina todo os rituais e cerimônias, visto que esses não podem ser operacionalizados, pois são impeditivos e atrapalham a aceleração de circulação da informação e da produção”. Os únicos filtros que a “sociedade da transparência” admite são os de imagem. Onde antes existia uma “autocensura” ou, no mínimo, “vergonha” ou “prudência”, hoje habita simplesmente o “eu”. Mesmo quando os indivíduos do século XXI são repreendidos por alguma ação no “mundo on-line” (geralmente depois de “furar a bolha” ou tomar proporções no “mundo off-line”), defendem-se através do “eu”. “Fui mal interpretado” ou “Quem me conhece sabe que não sou assim…”

De fato a fala das jovens é desprezível, mas a juventude é estúpida. Dez anos atrás aquelas três garotas teriam feito exatamente as mesmas brincadeiras ofensivas, teriam rido os mesmos risos maldosos e compartilhado o mesmo desprezo pela colega de turma. Mas sem o ímpeto incontrolável de compartilhar, o caso não teria, nas palavras da jovem, “saído de proporção” esperada. Tão pouco chegaria ao conhecimento da mulher, que não se sentiria humilhada ao tentar realizar um sonho. E, mais, quem sabe em dois ou três meses de curso corrido, fariam amizade com a “quarentona”. Mas se a juventude é a embriaguez sem o vinho, como disse Johann von Goethe (um verdadeiro polímata do século XIX), que os jovens de hoje aprendam logo a enfrentar as ressacas. Porque a tendência é que os porres fiquem cada vez piores.

Autor:

João Victor Uzer

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