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sábado, 27 de julho de 2024

A tecnologia é viciante? Sobre substâncias e passatempos

Existe uma preocupação crescente de que as tecnologias com as quais nos cercamos diariamente, como telefones celulares, tablets e computadores, sejam objetos viciantes. Ao explicar por que esse é o caso, blogueiros, escritores e cientistas referem-se a pesquisas no nível neurológico comparando-o com vícios químicos, evocando termos como sistemas de recompensa, liberação de dopamina etc. Mesmo que a coleta de evidências para tais afirmações, juntamente com a comparação de dados e a validação da pesquisa sigam impecavelmente os padrões científicos, quero argumentar que essa explicação neuroquímica de nossa interação com objetos tecnológicos deixa a desejar em relação a possibilidades convincentes de construir vidas com sentido ao lado desses objetos.

Substâncias viciantes são comumente associadas a problemas sociais. Levam à degeneração, perda de racionalidade, erro, distanciamento de seres superiores. Tradicionalmente, elas têm sido combatidas por meio de proibições e abstinência. No caso de escolhas mais progressivas, o combate é feito por meio da provisão de espaços especiais para injetar substâncias proibidas sob supervisão. O uso de telefones celulares, por exemplo, deve seguir o mesmo destino?

Proibição ou espaços especiais para uso supervisionado de tablets? Talvez campanhas para a redução do tempo gasto com tais dispositivos? Para os usuários, existem apenas duas alternativas em tal cenário: abstinência ou sentimento de culpa. A abstinência, porém, dificilmente é possível, já que nossas vidas se encontram cada vez mais emaranhadas com os recursos tecnológicos.

Suponhamos que alguém leve a sério o discurso neuroquímico e resolva cuidar de seu sistema neurológico. Talvez as campanhas tenham funcionado. Tal pessoa guarda o celular, deixa no carro, na sala. O que eles fazem agora? Passar tempo com o sistema de recompensa? Ter uma conversa com a dopamina? Embora o vocabulário dos neurônios e das substâncias químicas possa ser excelente para alertar as pessoas sobre os perigos de uma substância ou comportamento, ele falha no momento em que a pessoa já está convencida desses perigos e está pronta para conceder espaço e tempo separado de tais atividades.

Exatamente isso que está em jogo, espaço e tempo. O tempo passado com computadores e telemóveis, a presença destes dispositivos em todos os espaços das nossas casas. E é por isso que o vício importa: a onipresença desses objetos em nossos hábitos padroniza nossas experiências e nos leva a esquecer outras atividades, relacionamentos, eventos, hobbies onde esses dispositivos ficam à margem. O vocabulário de hábitos, atividades e acontecimentos ecoa propostas sobre o que se pode fazer: recriar modos de viver além da padronização que emana de dispositivos tecnológicos. Em outras palavras, tal vocabulário promove o pensamento de formas e locais significativos para passar o tempo.

Então a tecnologia é viciante? Definitivamente! Esse vício se manifesta no nível neuroquímico pela interposição de mecanismos envolvendo dopamina, sistemas de recompensa e outras substâncias? Claro, a neurociência tem mostrado isso! Isso é tudo? Absolutamente não!

Embora o vocabulário neurológico possa facilmente alarmar, dificilmente ele pode construir possibilidades. Nesse caso, vale resgatar os conceitos de hábitos, hobbies e talvez o extravagante savoir-vivre.

Autor:

Luiz do Valle Miranda 

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