Os acontecimentos do dia 8 de janeiro de 2023 entraram para história do Brasil como a primeira tentativa de golpe após a Constituição de 1988. Esse evento, marcado por quatro anos de infusão de um discurso antipolítico e terrorista, forçou o estado brasileiro a encontrar soluções emergenciais para reestabelecer-se. É sobre esse processo de retomada da ordem institucional que falaremos a seguir.
Em 2016, em virtude da deposição da então presidenta Dilma Rousseff, o Brasil passava por uma situação que enunciava tensões mais agravadas. Ao lado do desgaste da política petista que acumulara erros de gestão econômica e administrativa, havia a revolta de setores políticos e privados que desde o pleito eleitoral de 2014 não se conformava ao resultado das urnas. Dilma saiu e Lula, a principal voz do partido que tinha sido eleito por quatro vezes seguida, foi preso. O Partido dos Trabalhadores deixava o poder e passava a ser visto por alguns como uma “instituição criminosa”. “Tiramos o PT”, esse era o principal mote. Com o vácuo político deixado, uma vez que os partidos de oposição não tinham mais a estabilidade e popularidade de antes, não demorou para aparecerem os candidatos a salvadores da pátria. Dois foram escolhidos: um juiz com óbvias ambições políticas e um candidato cuja a vida pública era um retrato conhecido da política de escalão inferior no Brasil, a saber, embasado em condutas idiossincráticas, em geral, torpes quanto a temas de maior complexidade.
Eis que esses dois “fenômenos” se juntaram em nome de um projeto de poder, tudo isso fundamentado em ideais como Deus, Pátria e Família. Bom, como tudo que começa errado termina quase sempre errado, não demorou muito para que os escolhidos iniciassem uma disputassem por prestígio, rompessem e se tornassem inimigos, tudo isso acompanhado de perto por apoiadores que, atônitos, partiam para brigas e xingamentos em defesa de um dos lados. O que se seguiu disso foi mais um daqueles episódios dantescos originados de alguma crônica perdida que misturava Lima Barreto e H.P. Lovecraft.
Quase sete anos após Dilma ter sido exposta a toda sorte de escarnecimento público, com declarações de ódio nunca dirigidas até então a um político brasileiro e em um processo de impeachment cujo os detalhes técnicos foram claramente frágeis e tendenciosos, a conta veio: uma população fanatizada sai com paus e pedras para destruir a sede dos Poderes em Brasília como forma de reverter a derrota nas urnas de um rascunho de projeto autocrático possibilitado pela leniência e até cumplicidade de parte das autoridades constituídas. Porém, agora, a realidade era outra: em 2016, não haviam militares e civis armados do lado dos que foram depostos para colocar em risco a democracia ou qualquer coisa que passasse perto disso. Agora, esse “exército” estava preparado: militares dispostos em vários cargos do governo, armas espalhadas pelo Brasil e, prestando um amplo desserviço à sociedade, líderes religiosos favoráveis ao crime de estado alimentando o povo com ódio político. O inferno desce em Brasília. Como lidar com esse novo acontecimento na história brasileira?
Diversos especialistas têm se debruçado pra compreender não apenas os eventos do fatídico dia 8 de janeiro, mas apurar se as consequências daquele ato não estão sendo tratadas de modo arbitrário pela justiça, a qual, segundo a opinião de alguns, tem sido questionada quanto às garantias de liberdade após fracassado e trágico episódio. Destaco aqui a posição do jornalista estadunidense que reside no Brasil, Glenn Greenwald, o qual tem feito críticas alegando excesso nas decisões tomadas pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes. Parece haver um pequeno problema entre a ideia de democracia que esse premiado jornalista procura embasar-se e a situação da democracia no Brasil, considerando que saímos de uma ditadura há menos de quarenta anos e que nossa Constituição tem um pouco mais de trinta. Tome esses elementos à luz da formação da sociedade brasileira com todos os seus problemas estruturais e o “caldo engrossa” ainda mais.
Para começar, vale dizer, liberdade é um tema filosófico. Efetivamente, ela não existe em parte alguma. O que temos nas chamadas “sociedade livres e democráticas” é um acordo constitucional aberto à discussão da sociedade civil que prevê certas garantias individuais no tocante ao exercício das liberdades. Paralelamente, existem os contrastes sociais que emanam de uma ordem político-econômica que prioriza os interesses privados em detrimento da população em geral. O resultado disso se vê às expensas: obras inacabadas, estradas arruinadas, educação, saúde e moradia de péssima qualidade, direitos usurpados entre outras demandas ignoradas.
No tocante ao problema específico de que trata Greenwald, lembremos que os discursos do personagem principal e eleito como líder dessa ala, Jair Bolsonaro, nunca se embasaram em qualquer referencial democrático. Quaisquer autoridades que não apoiassem suas ideias fanáticas, como elogios a criminosos, tais como como um Ulstra ou Stroessner (esse último, nos horrores da ditadura paraguaia, mantendo uma cúpula de aliados no seu alto escalão cuja a fome sádica por estupro de meninas entre 12 a 14 anos, segundo investigação, ultrapassou mil casos) eram tratados como inimigos e jogados à turba dos “vingadores”, tudo conduzido por sua prole e demais bajuladores, os quais faziam o papel vil de enrijecer o ódio ao “inimigo” em mensagens disparadas na internet. De cara, já temos dois graves problemas: o primeiro, é a utilização de um cargo de responsabilidade pública em país de tradição democrática para exaltar personagens que levaram fama exatamente por cometerem crimes em um sistema onde a democracia estava abolida. A opinião de um representante do governo deve se pautar pelo respeito aos fundamentos que o alçaram ao posto que ocupa e não trabalhar para sua ruína. O segundo, é permitir que tais falas sejam aventadas sem impor as devidas punições a todos que a elas fizeram eco e, sobretudo, aqueles que se encontram em exercício de mandato. Isso está materializado exaustivamente e advoga contra os que podem se sentir lesados no exercício de sua liberdade.
Por outro lado, ainda estamos em plena construção de um arcabouço jurídico adequado ao novo panorama tecnológico, de modo que, discutir liberdades nessa seara é tarefa de todos, porém, emitir uma opinião qualificada acerca do tema é um intrincado trabalho técnico e filosófico, uma vez que os limites do que deve ser considerado legal em termos de um comportamento em que se reivindica o uso pleno de liberdades, precisa ser minimamente regido por critérios que vão além do mero ajuizamento da sociedade civil como um todo, mas que se define a partir de um corpo especializado e responsável a que se delega esse trabalho. Em outras palavras, é preciso compreender que o aperfeiçoamento de uma peça constitucional demanda sérias dificuldades teóricas e que essa tarefa não está isenta de erros. Claramente, o que se mostra ao leitor atento é um momento de transformação em que se exige paciência para que, de modo aprofundado, os conceitos básicos que regem a fundamentação dos direitos, como liberdade e justiça, acomodem-se o máximo possível aos desafios futuros.
É benéfico que Glen, como jornalista, esteja preocupado com a situação do Brasil e procure, de modo qualificado como lhe é peculiar, ampliar o debate sobre o tema da liberdade de expressão. Porém, é suficiente saber que tudo que foi feito no Brasil desde a deposição de Dilma, passando pela prisão de Lula até sua legítima volta à presidência em 2023, foi um momento de suspensão da racionalidade na política. Desse modo, é preciso reconstruir não apenas o estado brasileiro e fazê-lo retomar seu curso de modo aperfeiçoado e moderno em observância às garantias individuais, mas trazer de volta a razão (sem esquecer os afetos) para campo das ideias políticas, a qual esteve comprometida desde 2016 pelo descuido em administrar de maneira sóbria uma situação de instabilidade. É necessário tempo e temperança para os novos rumos da política no Brasil.
Como diz o sábio, há um tempo para tudo, Sr. Greenwald.
Autor:
Adriano Bittencourt. Doutorando em Ética e Filosofia Política na Universidade Federal do Ceará.
Excelente texto.
E viva o Brasil da impunidade, onde se compra a liberdade, onde quem pode mais sai da cadeia e o resto que… onde quem pode esconde as provas ou paga para a justiça acobertar tudo… uma vergonha, só sinto VERGONHA dessa justiça brasileira.
Concordo com o Sra. Vandeilson. A implantação da República no Brasil foi através de um Golpe de Estado e um observador da época comentou: todos assistiam bestializados aquele momento e então, toda a Historia Republicana foi feita golpes de arranjos institucionais do patronato.