Os primos combinaram passar o réveillon no litoral, como faziam antes da pandemia. Valfrido alugou uma casa pelo Airbnb, cujo anúncio dizia: “vista para o mar e acomodações para 14 pessoas”. O plano era rachar o custo conforme o tamanho das famílias, mas com os agregados, somaram 19 indivíduos. A casa térrea tem só 2 quartos, saleta e cozinha. Fica no alto do morro, tem vista para o mar, porém a 650 metros da praia. As fotos do site enganaram Valfrido. Os agregados não entraram no rateio e os primos arcaram com os custos dos humanos e dos 3 cães estressados e nada amigáveis.
O que era para ser um alegre encontro virou gritaria e lavagem de roupa suja. Os idosos tiraram os aparelhos auditivos para terem sossego. Dos 7 dias, choveram 5. Mesmo com goteiras, sem ar condicionado, janela da sala abrindo parcialmente e mini geladeira pifada, eles resolveram ficar para ver os fogos.
Shakespeare dizia que tudo vai bem quando acaba bem, mas ele nunca subiu a serra depois do fim de ano na praia com chuva, casa lotada e a Imigrantes congestionada. Sempre acaba mal.
Na rodovia parada e sob garoa, Valfrido conduzia o possante Tucson 2010 com a esposa, a filha de 8 anos, a poodle Anitta e a sogra Abigail, 66 anos, viúva e fã de aplicativos de namoro para idosos. Após 4 horas, Abigail precisava esvaziar a bexiga. Como o trânsito era mais lento que a fila do Posto de Saúde, ela desembarcou perto de um telefone de emergência. Quando o genro se deu conta, Abigail entrava pela abertura da mureta de concreto que protege o telefone, uns 15 metros atrás. A esposa proibiu protestos e ele se recusou a parar no acostamento.
Abigail agachou e arriou o bermudão em movimento sincronizado. A mureta baixa não evitou que os ocupantes de vários veículos vissem o acúmulo de tecido adiposo nos imensos e flácidos glúteos brancos da senhora, provocando risos em alguns, espanto e ânsia de vômito em outros. Ela não teve tempo de checar o ambiente ao se agachar e sentiu algo macio e peludo roçando as nádegas. Mesmo com o líquido fluindo copiosamente, pensou em levantar, mas ouviu:
- Abigail, é você?
- Quem está falando?
- Nestor, seu antigo namorado. Lembra?
- Cadê você? Você está me observando? Seu tarado!
- Fica tranquila. Não estou te observando, mas estou te sentindo.
- Sentindo? Como assim?
- Nossas nádegas estão se tocando e ainda guardo na memória a maciez de sua pele.
- Vá contar lorota para outro. O que está fazendo aqui?
- O mesmo que você, só que já terminei e pelo barulho do jato, você não. É muito refrigerante! Eu ia levantar quando senti sua pele roçando e o filme da minha vida passou todinho pela mente.
Eles namoraram há décadas, mas as famílias foram contra. Os pais do Nestor viam os Cintra como esnobes e os pais dela achavam o rapaz metido a inventor um pobretão fracassado. Ambos seguiram suas vidas, mas ele jamais esqueceu o perfume e a maciez da pele da amada.
No curto diálogo durante as atividades fisiológicas, Abigail, fungando num Lá bemol irritante, disse que enviuvou há 6 anos, mas é feliz, tem 2 filhos adoráveis, uma netinha e um genro exemplar. Mentira: foram 3 maridos, um pior que o outro, um filho preso, filha neurótica e genro imprestável. Até a Anitta rosna para ela. Só a neta se salva. Ele contou que fez fortuna com os inventos, viaja pelo mundo e só não se casou porque o amor de sua vida sempre foi Abigail. Mentira: faliu 2 vezes, nunca parou em emprego algum e não casou porque não tinha dinheiro nem para alugar um terno. Faz bicos como mecânico na rodovia e mora no carro velho.
O trânsito andou e Abigail precisou partir. Exigiu que Nestor ficasse agachado e não a visse. Eles se encontrariam das redes sociais. A menina viu a avó correndo e quase cair ao reembarcar no carro em movimento. Valfrido não parou. A filha reclamou da demora e a mãe disse que estava encharcada, mas seu semblante exalava felicidade. O genro era puro rancor e Anitta rosnava.
Abigail meditou: como teria sido a vida se as famílias não tivessem proibido o namoro? Devia ter suportado a pressão e seguido seus sonhos? Tem gente que é como carvão, que sob pressão transforma-se em diamante. Mas a maioria têm tanta impureza que jamais vira pedra preciosa. Morrem como o carvão da churrasqueira: cacos chamuscados, frios e inúteis.
Com o trânsito a emocionantes 15 km por hora, um Gol 1994 enferrujado, emparelhou com o Tucson. O motorista fitou a mulher contemplativa, com o olhar perdido em devaneios e pensou:
- Que velha mal acabada. A cara é igual maracujá maduro. Precisa de funilaria, pintura, revisão na suspensão e trocar o air bag. Cruz credo!
- Vó, porque você está olhando para aquele idoso?
- Estou imaginando se seu avô Astolfo fosse vivo estaria careca e tão mal conservado quanto o estrupício que dirige aquela lata velha enferrujada.
O toque de nádegas entre Abigail e Nestor fez emergirem as boas lembranças e seus corações palpitarem. Sorte que seus olhos nada viram!
Você poderia tentar ver beleza em nós idosos, o que achas?
Mas, encontros familiares tem seus perrengues, ainda mais com desconfortos vários. E cadê o bom humor?
Obrigado pelos comentários Marie Felice. Vou pensar mais nisso quando me tornar idoso. KKK.
A ideia foi explorar a memória afetiva. Após longo tempo sem se ver, as pessoas se imaginaram exatamente como eram.
Pensaram na aparência, não no conteúdo. Obrigado pelo comentário.
Parabéns e obrigado mais uma vez, Laerte!
Parabéns pela sutileza do texto e obrigado por nos proporcionar momentos de risos e descontração.
Obrigado pelos comentários amigo. Forte abraço.
Quem já não viveu um “barraco em família” ………as boas lembranças não são feitas só de beijinhos e abraços.
Bizzara essa história de como enxergamos o envelhecimento dos outros. As vezes, quando encontro amigos antigos comento com o Edu…nooossa…como fulana está acabada e ele responde “devem estar falando o mesmo de nós” rsrsrsrsrs……
KKK. É verdade. A gente vê os outros e não se olha do espelho. Obrigado pelo comentário.