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sexta-feira, 22 de novembro de 2024

O amargo e cansativo regresso do réveillon

Os primos combinaram passar o réveillon no litoral, como faziam antes da pandemia. Valfrido alugou uma casa pelo Airbnb, cujo anúncio dizia: “vista para o mar e acomodações para 14 pessoas”. O plano era rachar o custo conforme o tamanho das famílias, mas com os agregados, somaram 19 indivíduos. A casa térrea tem só 2 quartos, saleta e cozinha. Fica no alto do morro, tem vista para o mar, porém a 650 metros da praia. As fotos do site enganaram Valfrido. Os agregados não entraram no rateio e os primos arcaram com os custos dos humanos e dos 3 cães estressados e nada amigáveis.

O que era para ser um alegre encontro virou gritaria e lavagem de roupa suja. Os idosos tiraram os aparelhos auditivos para terem sossego. Dos 7 dias, choveram 5. Mesmo com goteiras, sem ar condicionado, janela da sala abrindo parcialmente e mini geladeira pifada, eles resolveram ficar para ver os fogos.

Shakespeare dizia que tudo vai bem quando acaba bem, mas ele nunca subiu a serra depois do fim de ano na praia com chuva, casa lotada e a Imigrantes congestionada. Sempre acaba mal. 

Na rodovia parada e sob garoa, Valfrido conduzia o possante Tucson 2010 com a esposa, a filha de 8 anos, a poodle Anitta e a sogra Abigail, 66 anos, viúva e fã de aplicativos de namoro para idosos. Após 4 horas, Abigail precisava esvaziar a bexiga. Como o trânsito era mais lento que a fila do Posto de Saúde, ela desembarcou perto de um telefone de emergência. Quando o genro se deu conta, Abigail entrava pela abertura da mureta de concreto que protege o telefone, uns 15 metros atrás. A esposa proibiu protestos  e ele se recusou a parar no acostamento. 

Abigail agachou e arriou o bermudão em movimento sincronizado. A mureta baixa não evitou que os ocupantes de vários veículos vissem o acúmulo de tecido adiposo nos imensos e flácidos glúteos brancos da senhora, provocando risos em alguns, espanto e ânsia de vômito em outros. Ela não teve tempo de checar o ambiente ao se agachar e sentiu algo macio e peludo roçando as nádegas. Mesmo com o líquido fluindo copiosamente, pensou em levantar, mas ouviu:

  • Abigail, é você?
  • Quem está falando?
  • Nestor, seu antigo namorado. Lembra?
  • Cadê você? Você está me observando? Seu tarado!
  • Fica tranquila. Não estou te observando, mas estou te sentindo.
  • Sentindo? Como assim?
  • Nossas nádegas estão se tocando e ainda guardo na memória a maciez de sua pele.
  • Vá contar lorota para outro. O que está fazendo aqui?
  • O mesmo que você, só que já terminei e pelo barulho do jato, você não. É muito refrigerante! Eu ia levantar quando senti sua pele roçando e o filme da minha vida passou todinho pela mente.

Eles namoraram há décadas, mas as famílias foram contra. Os pais do Nestor viam os Cintra como esnobes e os pais dela achavam o rapaz metido a inventor um pobretão fracassado. Ambos seguiram suas vidas, mas ele jamais esqueceu o perfume e a maciez da pele da amada. 

No curto diálogo durante as atividades fisiológicas, Abigail, fungando num Lá bemol irritante, disse que enviuvou há 6 anos, mas é feliz, tem 2 filhos adoráveis, uma netinha e um genro exemplar. Mentira: foram 3 maridos, um pior que o outro, um filho preso, filha neurótica e genro imprestável. Até a Anitta rosna para ela. Só a neta se salva. Ele contou que fez fortuna com os inventos, viaja pelo mundo e só não se casou porque o amor de sua vida sempre foi Abigail. Mentira: faliu 2 vezes, nunca parou em emprego algum e não casou porque não tinha dinheiro nem para alugar um terno. Faz bicos como mecânico na rodovia e mora no carro velho.

O trânsito andou e Abigail precisou partir. Exigiu que Nestor ficasse agachado e não a visse. Eles se encontrariam das redes sociais. A menina viu a avó correndo e quase cair ao reembarcar no carro em movimento. Valfrido não parou. A filha reclamou da demora e a mãe disse que estava encharcada, mas seu semblante exalava felicidade. O genro era puro rancor e Anitta rosnava.

Abigail meditou: como teria sido a vida se as famílias não tivessem proibido o namoro? Devia ter suportado a pressão e seguido seus sonhos? Tem gente que é como carvão, que sob pressão transforma-se em diamante. Mas a maioria têm tanta impureza que jamais vira pedra preciosa. Morrem como o carvão da churrasqueira: cacos chamuscados, frios e inúteis.

Com o trânsito a emocionantes 15 km por hora, um Gol 1994 enferrujado, emparelhou com o Tucson. O motorista fitou a mulher contemplativa, com o olhar perdido em devaneios e pensou:

  • Que velha mal acabada. A cara é igual maracujá maduro. Precisa de funilaria, pintura, revisão na suspensão e trocar o air bag. Cruz credo!
  • Vó, porque você está olhando para aquele idoso?
  • Estou imaginando se seu avô Astolfo fosse vivo estaria careca e tão mal conservado quanto o estrupício que dirige aquela lata velha enferrujada.

O toque de nádegas entre Abigail e Nestor fez emergirem as boas lembranças e seus corações palpitarem. Sorte que seus olhos nada viram!

Laerte Temple
Laerte Temple
Administrador, advogado, mestre, doutor, professor universitário aposentado. Autor de Humor na Quarentena (Kindle) e Todos a Bordo (Kindle)

6 COMENTÁRIOS

  1. Você poderia tentar ver beleza em nós idosos, o que achas?
    Mas, encontros familiares tem seus perrengues, ainda mais com desconfortos vários. E cadê o bom humor?

    • Obrigado pelos comentários Marie Felice. Vou pensar mais nisso quando me tornar idoso. KKK.
      A ideia foi explorar a memória afetiva. Após longo tempo sem se ver, as pessoas se imaginaram exatamente como eram.
      Pensaram na aparência, não no conteúdo. Obrigado pelo comentário.

  2. Quem já não viveu um “barraco em família” ………as boas lembranças não são feitas só de beijinhos e abraços.
    Bizzara essa história de como enxergamos o envelhecimento dos outros. As vezes, quando encontro amigos antigos comento com o Edu…nooossa…como fulana está acabada e ele responde “devem estar falando o mesmo de nós” rsrsrsrsrs……

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