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quarta-feira, 24 de julho de 2024

Cristofascismo e Cristoprogressismo: Duas faces do medo individual

“O homem, em sua arrogância, pensa de si mesmo como uma grande obra, merecedora da intervenção de uma divindade.” Charles Darwin

John Stuart Mill exasperava uma preocupação muito pertinente e acho que, como Thomas Paine, olhava o perigo da figura do Estado se estruturar naquele ente administrativo que de fora teria poder de regular condutas dos destoantes. Essa era também uma forma de elucidar a questão mais importante: O Estado transcende o indivíduo e por suas bases poderia legitimar que a maioria tente estrangular uma minoria quando ele se torna a representação de apenas uma orientação da coletividade? Mill e Paine eram radicalmente personagens do campo filosófico que alertaram a humanidade sobre os perigos da autoridade sem controle quando o fanatismo paranóico conduz comportamentos.

A vida é por si só um campo de oposições e discordâncias. “Todos se banham e não se banham no mesmo rio que nunca é o mesmo”, dizia Heráclito ao formar as bases da dialética e o desagradável e genial Dr. House disse que “se não houvesse competição ainda seríamos organismos unicelulares.” A proposição da Evolução pela Seleção Natural é a exposição da morte que acaba por ser a base da vida evolucionária de outros. A ciência natural e suas leis de destruição e reconstrução é a clareza do contraditório que move tudo, desde o nosso sistema mental sequenciando nossas relações íntimas até às explosões estrelares para forjar os metais mais pesados. A área da Psicologia com maior evidência é a Evolucionista, portanto, cientificamente falando, o que queremos e a cultura são propriamente uma luta constante e uma frustração dilacerante, mas exercê-la é o maior sintoma da liberdade. Esperar homogeneizar o todo, dar ordem ao caos já se alavanca nas pretensões religiosas como o objetivo básico de suas condutas. Dito de outra forma, a ditadura celestial é ameaça ao nosso cultivo do espanto e da sublime inspiração humana. A redenção do crente vem a galope: É a tentativa feroz de reduzir o território às pretensões da busca do tedioso céu prometido pela sua religião. Todo bolsonarista fanático é um crente delirante e com uma violência interna contumaz, e esse é o meu ponto de partida.

No dia 08/01 o coração da República sofreu um ataque frontal de uma multidão caricata de uma outra era. O monopólio legítimo da violência como remédio constitucional tomava água de coco e tirava selfies, enquanto bandidos batiam em cavalos e conspurcavam objetos da nossa identidade nacional vindas do passado. Isso é simbólico quando os passos do presente buscam apagar uma parte da história em busca de um novo corredor que chegue em outro quadro de identidade. Se eu considerar que a história é um conjunto de acontecimentos que desenbocam em outros, mudar uma parte é alavancar outra narrativa, mas uma narrativa que chega ao presente de um passado mais distante. Esse passado se finca na religião monoteísta média como a verdade. O bolsonarismo está ligado ao Estado Nacional Paranóico e a religião com requintes de crueldade contra seus desafetos e isso não pode ser ignorado.

Gosto das análises de Reinaldo Azevedo ou de Pedro Dória, mas ambos erram ao não tocar no “sagrado”, aliás, eles são de direita e as análises políticas do outro lado, à esquerda, não ignoram, mas passam pano ao alavancar uma suposta religião boa com um tal Jesus anacrônico comunista. Nada de novo! A religião ganhou um status social que seus adeptos podem cometer absurdos em seu nome e os mais sinceros analistas ainda acharão ofensivo tocar no assunto pela crítica. Bom, eu não cultivo deidades nem tenho predileção a ser rebanho, portanto, vou buscar às bases do bolsonarismo na religião e mais, mostrarei que estamos diante de um tipo de Fascismo Islâmico em forma de Brasil-religião como central mesclada com uma deidade nacional e fim.

Pacificamente morrerão, pacificamente hão de expirar em teu nome, e além do túmulo encontrarão apenas morte. Porém manteremos o segredo, e para sua própria felicidade os seduziremos com uma celestial e eterna recompensa”, assim escreveu Dostoiévski em os Irmãos Karamázov. Afirmei que o bolsonarismo ao destruir signos do passado buscam estruturar um outro passado para legitimar o presente. O meme, ou cultura se o leitor preferir, é o mesmo que o Estado Islâmico busca para modelar sua realidade. Isso tem ligação direta com o Pentateuco, mais precisamente, Abraão.

Em Gênesis, 17, 4-8 podemos ler:

Veja! A aliança que eu faço com você é esta: você será pai de muitas nações. E não se chamará mais Abrão, mas seu nome será Abraão, pois eu o tornarei pai de muitas nações. Eu o tornarei extremamente fecundo. De você farei surgir nações, e de você surgirão reis. Vou estabelecer para sempre a minha aliança entre mim e você, como aliança eterna. Serei o Deus de você e o Deus de seus futuros descendentes. Vou dar a você, e a seus futuros descendentes, a terra em que agora vive como imigrante, toda terra de Canaã, como posse perpétua. E eu serei o Deus de vocês.”

Matthew Kneale em, Crença, Nossa invenção mais Extraordinária, faz uma análise arqueológica precisa: os deuses de seja lá qual religião são pequenos. Eles tentam ser criadores de um sistema universal, mas na verdade dizem respeito a aplacar o medo momentâneo da humanidade. Por isso temos, por exemplo no Brasil, um caráter diversificado de um mesmo Deus. A Humanidade parece não ter mais originalidade para criar novas mitologias, pois o medo advém de culturas já estabelecidas. De um lado temos o medo do bolsonarismo e seu deus é armamentista, anticomunista, punitivista e violento. Do outro, o medo da esquerda, por isso seu deus é preocupado com questões de proteção ao pobre e ao LGBT em detrimento do interesse dos ricos, conservadores e reacionários. Estas são faces de um deus medíocre, minúsculo. Preocupado com interesses humanos, portanto é uma personagem antropomórfica. Vou atacar os dois, mas não farei ataques gratuitos. 

São três as mais importantes religiões monoteístas e abraâmicas: O cristianismo, o judaísmo e o islamismo. O Estado de Israel, Faixa de Gaza, Cisjordânia, parte da Jordânia, Líbano e parte da Síria compreendem o conglomerado médio que um dia foi Canaã. Essas são as terras que formam o palco das guerras milenares entre as três religiões que advogam serem detentora legítimas, pois são descendentes diretas do patriarca. Quando um islâmico explode torres gêmeas ou um cristão tenta derrubar um sistema a pretensão é a mesma: criar um Estado nos moldes da sua religião. Claro que o Brasil não tem ligação com a territoriedade do Médio Oriente, mas o meme é que a religião ligada ao Estado Bolsonarista se calca nessa ideia de cultura: O território deve seguir ditames cristãos, livrar a nação da orla do pecado massacrando o pecador para esperar a volta de Cristo. Duas falas de Bolsonaro são sintomáticas:

Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob as leis de todos nós. Ou vão para fora ou vão para a cadeia. Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria” (2018)

“ Somos um país cristão. Não existe essa historinha de Estado Laico, não. O Estado é cristão. Vamos fazer o Brasil para as maiorias. As minorias se adéquem ou simplesmente desapareçam” (1017)

Quando o Bispo Edir Macedo fez uma oração na cabeça de Bolsonaro em 2019 as palavras beiraram o bizarro:

“…O Senhor escolheu este homem para liderar os mais de 210 milhões de pessoas deste país…Tínhamos certeza que o Senhor, através dele, iria mudar a Nação toda”.

Bolsonaro não é só um político. Ele é o guia dos seus fanáticos até o Estado límpido esperado por Deus. Assim como os islâmicos tem Maomé, o Bolsonarista tem Bolsonaro. A história que essa gente tenta reconstruir é a própria ideia de que ser terrorista contra o Estado do pecado é legítimo, pois só é aceitável um território com um representante de Deus guiando-os ao mundo sem sujeira e dominado por um livro incongruente escrito na era do bronze por cuidadores de ovelhas sem poder político e morrendo de fome. Aí se encontra a lógica que mescla religião e nacionalismo. O que é o Velho Testamento se não a história de gente sem terra matando e invadindo territórios prometidos a elas por um suposto deus que dizia respeito aos seus interesses? (Conveniente, não?!). O mesmo Moisés que desce do Monte Sinai com um decálogo escrito “não matarás” dizima os medianitas e passa seu próprio povo no fio da espada por adorar Baal. O amor bolsonarista cristão e islâmico é esse: quem não estiver alinhados aos objetivos do meu Deus podem tratar de morrer. Quantas atrocidades o Estado Islâmico já cometeu e o mesmo vale ao bolsonarismo?

Quando um Bolsonarista perfura quadro ou quebra relógios o que se segue é apagar uma memória e solidificar outra. O que sobra é alguém como o estuprador, torturador, sequestrador e assassino Carlos Alberto Brilhante Ustra se figurando como herói. Alguém que tem as mesmas propriedades de Moisés: Um prototerrorista com requintes de crueldade, mas que combate os destoantes do Estado Límpido esperado pelos crentes, nesse caso, a violência pode ser ignorada. É um Deus tribal com seus servos cruéis!

Por outro lado, temos o Deus da esquerda, que não tem a menor capacidade de sanar ou mesmo combater o meme do outro lado. Esse Deus tenta construir a história nos seus moldes. O deus é aquele que perdoa ladrão, anda com prostitutas, cura leprosos, multiplica pães. Mas também é inútil em acabar com a fome, as doenças ou a desigualdade social. É um deus emocional e irracional. Sem a menor perspectiva de lógica. Movido pela dó. Quem compara os dois lados pode dizer, é melhor este do que aquele. A questão é que esse mesmo povo que idólatra o segundo não crítica o primeiro, pois acha que a religião é um campo das ideias que não deve ser alavancada ao ponto da crítica. O problema, para eles, é que o bolsonarista tem uma interpretação errada de Deus. Mas, Por exemplo: Esse maravilhoso Jesus do Novo Testamento, por acaso negou o deus perverso, sadomasoquista, espiador de estupro, com sede de sangue e terrorista do Velho Testamento ou era ele mesmo o sacrifício que levaria a humanidade a Ele? Era Ele mesmo esse próprio Deus na trindade? Por que curar leprosos e cegos não acabar com as doenças? Por que multiplicar pães e não acabar com a fome? A esquerda vai de vento em popa no mesmo tribalismo da direita reacionária: O pecado não permite acabar com os despojos da humanidade. Temos que nos colocar como rasteiros e imundos pecadores e adorar a um Deus temperamental que hora pode me punir hora pode me amar.

Comecei esse texto escrevendo sobre o medo que Mill e Paine tinham da totalidade do Estado. Depois, no tocante a invasão do Planalto, afirmei que o monopólio do Estado não invalidou a ofensiva bolsonarista. Pode parecer uma contradição quando minha crítica é justo o efeito totalizante. Mas não é. O Estado brasileiro, como formalmente laico, diz respeito a garantir certas liberdades individuais. Você pode ou não ter uma religião, por exemplo. E ambos os casos são válidos. Você pode exercer sua liberdade intelectual, inclusive criticando o poder.

Toda forma de governo possuí seus remédios constitucionais para garantir sua própria hegemonia. Então pensemos: Se temos um tipo de Estado que garante liberdades individuais e outro que busca ter um efeito totalizante e religioso, qual o preferível?

A lei 14.197 de 2021 é o protótipo de defesa de seu sistema. É um verdadeiro remédio constitucional. Diz – se que é crime contra o Estado de Direito:

 Art. , 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais:

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.

Golpe de Estado

Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído:

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência.

Nessas situações o bolsonarismo cometeu crimes contra o Estado ao invadir o Palácio. O Estado não é totalizante, mas um Estado de Direito, assim é legítimo que ele reprima pelas leis constituídas aqueles que tentam derrubá-lo em nome de uma religião delirante para sanar as liberdades individuais.

Quanto a religião da esquerda, é hilariante ela chamar-se quase que em sua totalidade de socialista. Cada membro socialista da esquerda que se diz religioso deveria se apropriar do materialismo dialético e perceber que a teoria marxista é em si incompatível com qualquer religião e que a espiritualidade e o significado vem do próprio mundo que supera felicidades ilusórias ( o que acho irônico em Marx é a sua tentativa de suprimir a religião em busca de um estado eterno de felicidade como o céu das religiões). Todo socialista deveria se lembrar do que Marx escreveu na sua Introdução a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel:

“  A angústia religiosa é, ao mesmo tempo, a expressão da angústia real e o protesto contra a angústia real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, da mesma maneira que é a alma de uma situação sem alma. É o ópio do povo. A abolição da religião como felicidade ilusória do povo é exigida para sua felicidade real. A exigência de abandonar as ilusões acerca de sua condição é a exigência de abandonar uma condição que necessita de ilusões. A crítica a religião é, portanto, embrionáriamente, a crítica àquele vale de lágrimas cujo o halo é a religião. A crítica arrancou as flores imaginárias da corrente, não de forma que o homem use a corrente sem qualquer fantasia ou consolo, mas de forma que ele se livre da corrente e colha a flor viva.

Um alerta pode ser feito: A direita reacionária tenta seu mundo totalizante e a esquerda socialista também busca seu céu nos mesmos moldes com um deus mais hipócrita e sem base na própria teoria que defende, algo que Marx pensou sem nenhum deus, pois o Materialismo Dialético é radicalmente ateu. Esse foi o adendo de Mill e Paine.

Eu acho a religião ridícula e odiosa? Sim. Mas longe de mim querer dizer as pessoas não a terem se assim quiserem. O Estado que prego e que deve ser defendido é aquele que existe para proteger a minha decisão individual de ter ou não uma no meu mundo privado. A partir do momento em que ela saí da esfera individual para querer constituir um Estado que se perpetue na vida de todos é totalitária, portanto nociva a natureza e inconstância da própria vida humana. Religião é para quem quiser. Alguém se sente bem sendo um escravo de um Deus punitivista ou de um Jesus alegre e contraditório? Divirta-se! Mas a sua imposição a quem não quer é uma ofensiva inaceitável. Apenas o Estado Laico é necessário e legítimo. Fora dele temos apenas escravidão de uma maioria contra a minoria. Por tudo isso, Mill e Paine devem retornar urgentemente como as vozes das paixões republicanas.

Autor:

Felipe Soares

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