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quarta-feira, 24 de julho de 2024

Legítimo Representante da Nação

Certos acontecimentos na vida só se dão a conhecer pelo seu resultado, jamais pela causa. Façamos uma analogia, com suas diferenças e semelhanças não explicam fundamentalmente, mas nos dão uma pista: futebol e economia (principalmente de Bolsa de Valores), por exemplo, são campos facilmente comentáveis na medida em que já temos de antemão a consequência final de fatores absolutamente imperscrutáveis.

Analisar retroativamente eventos nessas duas áreas dão a todos os ouvintes – e principalmente ao portador da mensagem – a grata sensação de já ter previsto, e talvez evitado, aquele resultado num universo paralelo. Mais, fica no ar que com ele existe uma chave explicativa para os eventos vindouros.

Acontece que, embora tendente à estabilidade, eventos complexos carregam dentro de si um elemento caótico fascinante. Só por essa clave faz sentido João Madureira ter sido eleito deputado federal pelo Sudeste. Não se sabe ao certo em que período se passou esta biografia, mas é certo que isto é o que menos importa.

Nascera simples, mas não paupérrimo. Seu pai, pequeno comerciante do ramo das verduras, hortaliças, das frutas que se dizem legumes e vice-versa, ensinou ao filho, feito único por desventuras da vida, como se levam a cabo os negócios informais entre a gente do subúrbio. A mãe falecera aos seus catorze anos, em virtude de complicações do parto do que seria seu terceiro irmão. E do meio, perdera a irmã para a meningite antes que fizesse sete. Há quem tenha esquecido, mas a vida já foi bem menos abastada de recursos preventivos.

Antes de fazer dezoito, já montara um lugar fixo e parcialmente formal para negociar as coisas que atravessava do campo, e não sem já vislumbrar as centenas de exigências, alvarás, impostos, licenças e permissões para operar no dia a dia. A reboque disso tudo, vem toda uma trupe de “facilitadores”, quase sempre funcionários da própria Prefeitura, mas conhecedores das engrenagens normativas e pessoais que precisam sempre de uma ajudinha pra poder girar; porque toda a burocracia tende a se fechar em si mesma, de forma que não haja missão maior do que justificar a própria existência e que o cliente, que seria idealmente o cidadão, passa a ser só um incômodo.

Daí, João tem seu primeiro salto lógico. Acontece que seu negócio era sazonal; a inflação dos anos oitenta e os planos mirabolantes tornavam seu negócio especialmente frágil para exigir fidelidade de labor até o final da vida. Do contato que teve com a burocracia na forma em que esta se lhe apresentava, concluiu que o melhor era trabalhar na maior empresa que existe: o Governo. Calculou que ali teria no mínimo estabilidade e plano de carreira, o que de fato encontrou concursando e engrossando as fileiras da Guarda Municipal.

Não abandonara sua primeira fonte de renda, apenas repassou a execução e ficou numa distância administrativa suficientemente legal frente aos estatutos e leis a que agora estava subordinado. Seu plano de vida até aqui revelou ser um indivíduo sensato, pragmático e bem trabalhador, diga-se de passagem. Sim, porque a estratégia que o levara ao serviço público se deu por prudência frente à vida mais do que por qualquer outra coisa. Com a expansão do seu círculo de amizades e conforme a maturidade lhe vinha, grassou prosperar com outro negócio ali, uma sociedade acolá e decisões acertadas em relação em dinheiro. Já casado e com dois filhos, negócios bem-sucedidos e conhecimentos na zona norte bem falada fama de sujeito sensato, impuseram-lhe por meio do hábito o epíteto da sua principal área de operações: Madureira.

Havia também nele não uma ganância, mas uma ambição de coisas importantes. Sentindo que haveria mares a serem desbravados e já com o sentimento de ação por coletivos no imaginário, frutos dos eventos em associações, sindicatos, confrarias e afins, decide se candidatar a vereador. Bom mandato: não desagradou ninguém, fez por onde nas cercanias que lhe competiam – obras, churrascos, eventos; conseguiu poupar o suficiente pra renovar para um eventual segundo mandato, mas certo cacique partidário local viu em João um potencial para subir direto pra outras divisões. Deputado federal lhe soou demais num primeiro momento, mas novos amigos lhe surgiram, pegaram na mão e o levaram a novos voos.

Dentro de menos de cinco anos, passara de legislador municipal a legislador nacional. Jamais fizera um projeto de lei – e não dá para condená-lo de todo que não o fizesse. Participava das discussões orçamentárias apenas contando com a habilidade de não se comprometer negativamente entre os pares. Calava prudentemente na hora que tivesse de calar – ainda que seus olhos e ouvidos se escandalizassem com o que testemunhava por detrás das coxias. Seu pouco conhecimento de administração pública e o ímpeto legislativo quase nulo pelo menos não o fizeram atrapalhar a vida do cidadão com proatividades puramente biográficas, o que significa de certa forma um pequeno triunfo para a sociedade.

Em Brasília o jogo era diferente. O carro que transportava João no dia a dia não era mais um sedã médio quase popular, era um de luxo – e blindado. Tinha segurança particular, plano de saúde e telefonia celular ilimitados. Sua alimentação era exemplar, pensada e comprada do bom e do melhor. Auxílio moradia – mesmo morando em residência funcional, verbas variadas, passagens aéreas conforme lhe aprouvesse, enfim. Definitivamente subira algumas escadas nessa pirâmide. Claro que manter o arranjo que lhe permitiu chegar tão longe tem lá suas zonas cinzas, mas não vamos entrar no mérito pra não vulgarizar a imagem do agora nossa Excelência.

Fato é que agora já não era uma pessoa comum. Podia decidir o destino de milhões de brasileiros e de reais, e se algo no país fosse mal das pernas lançava mão de uma infinidade de justificativas e argumentos, da culpa do Executivo a fatores internacionais.

Já de muito tempo não era do povo, aquele conceito que só participa do governo pagando impostos e apertando botões, e era de certa forma até difícil explicar de forma racional como alguém enxerga o serviço legislativo como carreira e não como sacerdócio. E se era representante de fato do povo não dava para afirmar, mas com certeza era um legítimo representante de uma nação onde quem serve era para estar sendo servido.  

Autor:

Mário Pereira

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