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terça-feira, 3 de setembro de 2024

D. Maria

Eu tive uma vizinha que era benzedeira e contadora de histórias chamada D. Maria. Ela morava ao lado da nossa casa de infância, em uma casa muito grande levantada pelos seus antepassados. Me recordo que, nessa casa havia um porão debaixo do tapete da sala. 

Esse porão assustava qualquer criança que por ela passava…

Como tradição daquele bairro, D. Maria reunia bem depois do sino das seis da tarde, os seus netos, bisnetos e as crianças da rua na sua casa […]. Ela tirava de dentro de seu peito farto, um coro de terço e começava a rezar! E todo mundo tinha que acompanhar com ela e, a gente criança, que não sabia a oração, tinha que acompanhar quem sabia.

A benzedeira ao finalizar a oração do terço, sempre erguia as mãos para o céu e assoprava o lampião que ficava no meio da gente.

Eu, menino curioso que só. Não hesitei e, perguntei a D. Maria, o porquê de olhar para o céu e chiar bem baixinho quando terminarmos a oração. A benzedeira, como sempre inteligente, dizia que estava dedicando uma prece aos que haviam partido e os famintos. 

Daquele dia em diante, quando D. Maria me disse isso, eu pude ter a certeza, que quem morava no sótão eram os que haviam partidos. 

Me recordo, que naquele dia, eu resolvi dormir lá, a pedido do seu neto, meu melhor amigo de infância. 

Uma madrugada porém – e sempre, em toda história, há uma parte melindrosa… eu senti sede, e atravessei o quarto que hospedei, que passava por dentro da sala e depois chegava na cozinha. Tomei um copo de água e belisquei um pedaço de broa de milho que estava sob a mesa. Na volta pro quarto, quando pisei em cima do tapete da sala, eu ouvi gargalhadas vindo do porão. No mesmo instante, minha barriga gelou e meu corpo paralisou. 

– Lucas, o que é essa risada? – perguntou o Miguel, meu melhor amigo. Com cara de sono e incomodado pela risada.

Não sei, ela vem do porão. Daqui de baixo, onde mora os que partiram…

Disse eu bem baixinho, com cara de assustado.

Miguel soltou uma gargalhada e me chamou de bobinho, me repassando um grande e responsável desafio:

– Pois então, desce lá embaixo e diga a esses que partiram, que a minha avó os chama no quarto.

Eu me recordo, que quando menino, eu gostava de enfrentar os desafios dos meus amigos e primos e mostrar a eles que sou um grande vencedor. 

E não sosseguei enquanto não me via sozinho naquela madrugada na sala, e a curiosa dúvida me acompanhando: a tal da gargalhada que deram embaixo do porão: quem seria? 

Devagar para não acordar a benzedeira, levantei o tapete, e realmente tinha um portinha. Porém ela tinha fechadura. Onde a chave poderia estar?

Revisei o armário da sala, da cozinha e nada da chave.

-Lucas, o terço que a minha avó carrega no peito é a chave desse porão…

Disse o Miguel, curioso que só!

Como eu vou pegar o terço de dentro da camisa da benzedeira? Coragem vinha e depois ia embora, vinha e depois voltava… até que com cuidado, aproveitei o momento que ela roncava alto, peguei o terço que estava no criado mudo ao seu lado e, voltei, bem quietinho.

Abri a portinha do portão com o coração assustado. E, quando a abri, pus meu rosto de menino assustado no escuro porão dos que haviam partido. […]

Procurando alguma luz, percebi uma fresta de luz branquinha e bem fininha vindo de um pedaço de madeira rachado. Acompanhei até chegar a essa luz e, a madeira velha comida por cupim caiu e fez um enorme estalo. 

Voltei-me para olhar para dentro do porão, em que deviam estar os que haviam partido cedo […] O que ali estava, juntando formiga até, muito mal armazenados em sacos de padaria, eram biscoitos, macarrão instantâneo, pó de café pilão, açúcar, paçoca e mais um monte de coisas gostosas que a benzedeira esperava todos dormir pra descer e guardar essas coisas no porão. Lembrei-me da fábula contada pela minha professora do primário, sobre a formiga que juntava comida no verão para o inverno. Será ali o estoque de alimentos para os dias de inverno, quando o frio enregelava na rua de São Sebastião? Ou era comida para os que haviam partido? […]

Afinal, quem era que tinha dado a gargalhada?

A gargalhada aumentou. E o Miguel, lá em cima perguntando se estava tudo bem. Voltei a paralisar e ele, assutado foi correndo acordar a benzedeira, dizendo  que os que haviam partido cedo me pegaram no porão. 

D. Maria levou um susto enorme, me colocou de castigo, mas, em seguida, me perdoou […].

E só assim eu pude descobrir que, quando a benzedeira terminava a oração do terço, erguia as mãos para o céu e chiava. Era um pedido e uma prece a Deus, que não deixasse faltar pão na mesa de ninguém, nem da rua de São Sebastião e nem do mundo inteiro. E nem deixasse que os que haviam partido cedo, vivessem de fome. 

E por isso, ela os alimentava. 

Mas afinal, quem tinha dado aquela gargalhada?

Autor:

Lucas Dolher

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