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domingo, 16 de junho de 2024

Um velório inesquecível

Garlindo morreu. Mendonça, seu parceiro de boemia desde o supletivo, quando ambos se orgulhavam de terem saído com quase todas as colegas de classe, não pode comparecer ao velório. Está atolado de trabalho, na mira do patrão e é persona non grata na família do falecido, por conta das inúmeras farras e confusões em que ambos se meteram. Recorreu ao Isaias, auxiliar fiel e motorista da van do Hortifruti, para representa-lo no funeral.

Mendonça o escalou para fazer uma entrega nas imediações do cemitério e o convenceu a dar uma passada no velório para orar por Garlindo em seu nome. Ele não conheceu o morto, mas sabe que precisa de orações pelo que ouviu do supervisor sobre as farras nos finais de semana: mulheres, bebidas, cigarro e outras safadezas inomináveis envolvendo objetos e animais. A lista de pecados é extensa, mas apesar de ser seu primeiro velório, ele se julga preparado para orar e encomendar a alma do pobre Garlindo.

Aluno do Curso de Formação de Pastores, Isaias leva a sério sua fé e pratica oratória rebuscada com vizinhos e colegas de trabalho. Tem sempre à mão um paletó preto, a bíblia e um clérgima, o colarinho clerical que impõe respeito e abre passagem, além óculos de leitura sem grau, só para parecer erudito. O entregador de verduras costuma turbinar seu currículo e se apresenta como Operador Logístico de Reposição de Estoque Perecível. Bem mais suntuoso.

O trânsito intenso o atrasou muito. Quando chegou ao velório, Garlindo já era. Foi cremado e os poucos familiares já tinham ido embora. Isaias não se deu conta e entrou numa sala com o nome Arlindo na tabuleta. O falecido, 30 anos, casamento marcado, era trabalhador, honesto, moralista, pacato e professor voluntário no curso de alfabetização de adultos. Familiares, amigos e dezenas de alunos aguardavam um religioso para encomendar o corpo.

Isaias, de paletó surrado, clérgima e bíblia em mãos, entrou na sala e disse: boa tarde. Eu sou o pastor Isaias e… Foi interrompido pela rápida movimentação das pessoas. A simples menção da palavra pastor abriu espaço junto à cabeceira do caixão. Quem estava fora entrou e quem estava sentado se levantou. Todos os olhares eram para Isaias. Silêncio profundo e respeito.

O futuro pastor viu a possibilidade de atender o pedido do Mendonça. Olhou ao redor da sala e decidiu praticar sua oratória e os ensinamentos do curso. Colocou o óculos, pigarreou, empolou a voz e declamou passagens bíblicas que sabe de cor.

  • Aqui se faz, aqui se paga. Dize-me com quem andas e dir-te-ei quem és. Estamos aqui reunidos para nos despedirmos do irmão Garlindo…
  • Arlindo – a noiva corrigiu.
  • Que nos deixa muito cedo, sem ter vivido plenamente a palavra.

As pessoas se entreolharam, mas ninguém ousou interromper a pregação. O momento era de consternação. Contudo, apuraram os ouvidos.

  • Muitos confundem felicidade com luxúria (a noiva tossiu e a ex-futura sogra do morto torceu o nariz). De boas intenções o inferno está cheio. De que adianta ser cordeiro de dia e lobo à noite? Prazeres carnais, bebedeiras e vícios ocultos castigam o corpo e maculam a alma.

Ouviram-se burburinhos e mais tosse. Os homens pigarreavam, ajeitavam a gravata e cruzavam as mãos à frente e às costas, certamente incomodados. As mulheres se agitavam e dirigiam olhares fulminantes aos namorados, maridos e homens em geral em busca de sinais de culpa.

  • Que sirva de aviso a quem fica. Andai pelos caminhos retos, pois não lhes cabe saber quando chegará seu dia e hora. No momento, tudo parece excitante e maravilhoso, mas viver uma vida falsa, desregrada, bebendo, fumando e praticando libidinagem com colegas do curso, pessoas da vida mundana e até animais, não traz salvação a ninguém.

Pânico geral. Alunos e alunas do professor Arlindo coraram e baixaram as cabeças. A noiva procurou faces rubras denunciadoras e a sogra franziu o cenho e encarou a filha como quem diz: “eu bem que lhe avisei”.

Num gesto dramático e lúdico, Isaias pede a alguém um cigarro e o coloca nas mãos do morto dizendo: leve consigo para lembra-lo dos vícios terrenos e inspirar-lhe a penitência. O pastor perguntou se alguém tem fósforo e a sogra fulminou: fecha logo o caixão. Pra onde o safado vai já tem bastante fogo. Velório inesquecível o do pobre professor Arlindo!

Laerte Temple
Laerte Temple
Administrador, advogado, mestre, doutor, professor universitário aposentado. Autor de Humor na Quarentena (Kindle) e Todos a Bordo (Kindle)

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