Em tempos eleitorais, tenho uma proposta que deveria fazer parte dos programas de governo, se é que eles ainda existem, dos candidatos ao cargo máximo do executivo nacional. Em noite de final de Copa do Brasil, as atividades laborais deveriam ser momentaneamente suspensas, inclusive as aulas.
Há 20 anos exerço a docência superior e, exceto entre 2019 e 2021, eu sempre tive turmas nas quartas-feiras, o dia mais chato da semana. Peço o consentimento e paciência do leitor para fazer uma breve regressão. Quando criança, tive um cachorro que corria atrás de tudo e de todos, um verdadeiro chato, seu nome: Quarta-Feira. A equidistância deste dia entre a raivosa segunda e a esperançosa sexta, é como a metade de uma longa viagem, maçante. O seu caráter enfadonho se acentua quando, para desespero de todos, ele abriga uma partida de futebol de grande importância.
Quando me encaminhei para a Faculdade, na última quarta-feira, dia da final da Copa do Brasil, já sabia de cor e salteado as perguntas que seriam feitas: “Professor, a aula de hoje só vai até nove e meia, não é?” ou “Professor, o senhor vai liberar a gente para ver o jogo?”. Há ainda a clássica afirmativa em tom quase apocalíptico: “Professor, hoje tem jogo do Flamengo!”. É bom ressaltar que no primeiro jogo decisivo da Copa do Brasil eu fui poupado das inquirições de sempre já que a partida foi disputada no feriado de 12 de outubro. Na noite do dia 19, nem bem havia entrado na sala de aula, antes mesmo da saudação de boa noite, as perguntas foram disparadas.
Respirei fundo para não me transformar no personagem de uma jocosa piada, um italiano, que em uma viagem teve o pneu do seu carro furado no entardecer. Já chateado com o incidente, descobre que o carro está sem o estepe. No meio da estrada, a certa distância, ele vê a luz de uma casa e resolve que irá até lá pedir auxílio. Durante a caminhada, não sei se em decorrência do próprio cansaço, ele imagina que o anfitrião lhe negará a ajuda e ele vai se irritando com esse pensamento. O nosso personagem bate na porta e ao ser atendido, sem sequer explicar o seu problema, ele já agride verbalmente o dono da casa.
Após a necessária pausa, de forma educada, porém enfática, afirmei que o horário da aula seria integralmente cumprido e devolvi com uma pergunta: “Vocês acham que eu, que estudo e sou apaixonado pelo futebol, não gostaria de assistir o jogo? Vocês realmente acham que eu queria estar aqui para dar a aula?”. Após o constrangido silêncio, aproveitei as perguntas e as encaixei com a temática que iríamos discutir, o liberalismo em John Stuart Mill (1806-1873).
De forma bem simples, fiz uma breve introdução do pensamento de Mill, afirmando que o economista e filósofo inglês entendia que a liberdade individual tem como limite a possibilidade de causar dano real ou potencial a outros indivíduos e, nestes casos, a atuação do Estado não é apenas necessária como legítima. Mesmo sabendo que muitos ali gostariam de assistir a grande final, inclusive eu, infringir as regras, burlar as normas, seria causar dano real a outros indivíduos. Eu prejudicaria a instituição que me emprega e confia no meu trabalho, os alunos que não gostam de futebol e, finalmente, a todo o grupo que ali se encontra, afinal eles pagam pelo curso e não estariam recebendo pelo serviço contratado. Mas, deixei claro, seguindo os ensinamentos de Mill, que eles tinham a liberdade da escolha, ou seja, aqueles que não quisessem assistir a aula poderiam ir embora, sabendo que a falta seria computada.
Discussão encerrada, as aulas foram dadas até o horário habitual e isto significou que eu não assisti, ao vivo, o primeiro tempo da partida que teve maior predomínio da equipe mandante. Antes de você, cruel leitor, afirmar que eu estou fazendo papel de “papagaio de pirata” repetindo o que a imprensa já afirmou, perceba que fiz uma ressalva, não assisti o jogo ao vivo, no entanto, precavidamente, antes de sair de casa, o coloquei para gravar.
Já com a aula finalizada, eu e os outros três professores, realizamos uma pequena viagem entre Formosa e Brasília. No trajeto, além das piadas com o nosso sempre bem-humorado motorista, o flamenguista Valdir, assistimos no celular o crescimento da equipe paulista. O Flamengo, com a vantagem no placar, se retraiu em demasia a partir dos 25 minutos da etapa final e, no meio do caminho eu vaticinei, o Corinthians vai empatar quando estivermos próximos do posto Colorado, local em que deixo o meu carro para pegar a condução que nos leva até Formosa. E não é que aconteceu!
Os minutos finais da partida e as duas primeiras penalidades de cada equipe eu ouvi pelo rádio do carro. Quando cheguei em casa, liguei a televisão para acompanhar as derradeiras batidas que culminaram na vitória flamenguista por 6X5. Ainda excitado com o jogo e aproveitando que estou de férias no Iphan, o que me permite acordar um pouco mais tarde, resolvi assistir o primeiro tempo do jogo antes de dormir.
O futebol nos apresenta fatos inusitados. O Flamengo, até o início de junho, quando trocou Paulo Sousa por Dorival Júnior, parecia em franca decadência e era dito por toda a imprensa que a equipe deveria passar por uma ampla reformulação de elenco em 2023. Nas mãos do brasileiro, bom treinador, mas de poucos títulos, diversos atletas retomaram o bom futebol e ele conseguiu encaixar Gabigol e Pedro na equipe. Contando com dois atacantes extremamente gabaritados, municiados por habilidosos meio-campistas, é muito difícil o Flamengo passar 90 minutos sem balançar as redes adversárias. Me atrevo inclusive a dizer que, se Pedro confirmar a sua mais que merecida convocação para a Copa do Mundo, ele deveria dar metade dos bichos que ganhar pelo Brasil para Dorival Júnior.
E o que falar de Rodinei? Já longevo no Flamengo, ingressou na equipe em 2016, o lateral sempre foi muito criticado e chegou a ser emprestado para o Internacional entre 2020 e meados de 2021. Com a chegada de Dorival Júnior, o atleta fez grandes partidas e coube a ele a responsabilidade de bater a penalidade que poderia dar o título ao seu clube. Com aparente tranquilidade, fato que foi desmentido pelo jogador na entrevista ao final do jogo, ele deslocou Cássio após chutar firme e garantiu o tetracampeonato da Copa do Brasil e o milionário prêmio para o clube da Gávea.
Após um final de semana de péssimos exemplos com as invasões de campo e cenas de violência e barbárie proporcionadas pelas torcidas do Sport e do Ceará, Flamengo e Corinthians fizeram um duelo de gigantes e comprovaram, além da beleza do futebol, algo que não se pode mais refutar, que a organização, sobretudo financeira, é fundamental para o crescimento dos clubes e a conquista de títulos.
Autor:
Luiz Henrique Borges