Romeu De Lírio é estudioso, autodidata e eterno otimista. Sabe que sua hora vai chegar. Só não sabe quando, como, nem o que vai acontecer, mas tem de estar preparado. Detestará não saber o que fazer quando sua hora chegar.
Lê muito, assina jornais, revistas, canais, blogs e sites sobre os mais variados temas. Dono de espantosa memória, sabe de cor a capital, o PIB, taxa de inflação e de desemprego de dezenas de países; a população de baleias no Ártico; a constante matemática Pi (?) até a centésima casa decimal; todas doenças catalogadas pela OMS e milhares de dados que considera relevantes. Palestra por horas a fio sobre meia centena de assuntos capazes de arrancar calcinhas na plateia, mas senso de humor e desconfiômetro não são seu forte. De Lírio, 38 anos, não tem namorada e vive só. É difícil encontrar alguém compatível.
Os poucos amigos testam a prodigiosa memória fazendo perguntas como: nomes de todos os papas, presidentes norte americanos, afluentes do Amazonas (por margem), número e peso atômico dos elementos da Tabela Periódica, rol das obras de Shakespeare etc. Quando armam pegadinhas do tipo: qual era a cor do cavalo branco de Napoleão, ele responde:
- A cor era castanho. Branco era o nome do cavalo.
Quando aplaudem ou elogiam suas respostas, De Lírio encerra a conversa dizendo; eu poderia fingir modéstia, mas quem acreditaria? Impossível discordar!
Por que se prepara tanto? Por que memoriza esses dados? Não seria melhor concentrar-se em 2 ou 3 temas? Acontece que, diariamente, a todo instante, em algum lugar, tem alguém fazendo coisa errada e ele não pode deixar de corrigir os erros alheios. Mas para isso é preciso preparo.
O tempo passou, mas De Lírio nunca desanimou. Sua hora vai chegar. Certa tarde, enquanto saboreava um café expresso e discorria em voz alta sobre tipos de grão, pontos de torrefação, moagem adequada e harmonização, para ninguém em particular, despertou a atenção de Morgana, a bela caça talentos para programas vespertinos de variedades da TV, eufemismo para cultura inútil para donas de casa, aposentados e desocupados. Para testá-lo, a moça perguntou sobre azeite, música, queijos, economia, vinhos, comércio internacional, astrologia, psicoterapia, tecnologia, medicina e política. Espantou-se com a memória e a capacidade de raciocínio do interlocutor e ele ficou feliz com o interesse de Morgana. A conexão foi instantânea.
A jovem produtora viu em De Lírio um diamante bruto a ser lapidado. Entende de tudo, mas é ingênuo e tem dificuldade com sarcasmo, ironia e perguntas capciosas. Monopoliza a conversa e não deixa ninguém falar. Não tem filtro, nem receio de chamar o interlocutor de ignorante, débil mental ou coisa pior. Com orientação adequada, pensou Morgana, o programa terá uma nova e importante atração capaz de alavancar a audiência.
Numa sessão de mídia training sobre como se prevenir contra interlocutores hostis, perguntado sobre o motivo de decorar tanta informação, De Lírio disse que existem várias respostas para essa pergunta e a mais simples é: não é da sua conta! Morgana sorriu. Ele esta melhorando. Pelo menos não socou o entrevistador como na última vez.
Doutor De Lírio, nome artístico, estrelará o quadro “Tudo o que você quer saber e tem vergonha de perguntar”. Ele é o cara certo, na hora certa, a única atração capaz de responder qualquer pergunta, de parto de urso Panda a pouso de nave espacial.
Há uma semana da estreia, na gravação do episódio piloto, ele chegou na emissora, passou pela maquiagem e foi para o estúdio. Errou o caminho e entrou num auditório crente que estavam terminando os preparativos. Sentou na primeira fila e um técnico de som instalou o microfone de lapela. Uma vinheta anunciou o reinício do programa e o mediador disse que naquele bloco, convidados especiais fariam perguntas. De Lírio teve o rosto iluminado e a luz vermelha na câmera indicou que ele estava no ar, ao vivo.
- O tema sorteado é Saúde Pública – disse o mediador. Seu nome e sua pergunta, por gentileza.
- Sou o Doutor De Lírio – disse, seguido de risos da plateia.
O mediador, surpreso pelo convidado fora da pauta, controlou o ambiente e devolveu a palavra a De Lírio. Ele esperava responder sobre diversos tópicos, mas em vez disso, foi solicitado a fazer uma pergunta. Só que ele esta preparado e durante 2 minutos formulou complexa questão sobre prevenção de doenças tropicais, digna de arguição de defesa de pós-doutorado na Sorbonne.
Os debatedores não se abalaram. Disfarçaram a dificuldade em entender o que foi perguntado, mas todos, sem exceção, despejaram uma lista de medidas emergenciais e promessas de muita verba. Morgana entrou de mansinho no estúdio e tirou De Lírio da plateia tão logo o moderador anunciou novo intervalo comercial. Aquilo era o debate ao vivo com os principais candidatos.
Romeu De Lírio assistiu incrédulo o restante do debate. Ele, que é capaz de palestrar sobre os mais variados temas, não é sequer gerente na empresa onde trabalha. Enquanto isso, aquelas pessoas demagogas e despreparadas se acham plenamente capacitadas, mas não discorrem sobre coisa alguma sem cometer erros graves. Como se não bastasse, um deles será o próximo Presidente da República!
Mas ele errou a pergunta. Deveria arguir sobre as origens da venerável cachaça. Pelo menos um é expert!!!!
KKK. Grato pela leitura e pela observação Helvécio Gouvêa. Publico crônicas de humor toda sexta, 10 da manhã. Forte abraço.