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domingo, 1 de setembro de 2024

Panorama dos direitos reprodutivos no Brasil. A reprodução assistida como uma questão

No plano legal o Brasil historicamente adotou uma posição pró-natalista. Como exemplo desta política, destaca-se que já em meados do século XX a Consolidação das Leis Trabalhista-CLT acolhia a proteção ao direito de maternidade. Além disso, ainda na década de 40 o Código Penal previa a proibição do aborto voluntário, exceto nos casos de estupro e de risco para a vida da mãe, previsão está, aliás, que até os dias de hoje se mantém. Ademais, a Lei de Contravenções Penais proibia o anuncio de processo ou de substância que provocasse o aborto ou evitasse a gravidez. Este artigo da Lei de Contravenções Penais só viria ser alterado em 1979 com a retirada, somente, da proibição quanto ao processo ou substância para evitar gravidez. Falar em direitos reprodutivos, como visto, significa, inevitavelmente, tocar na trajetória do movimento feminino, o que no panorama brasileiro não seria diferente. 18 Nas décadas de 1960 e 1970, o movimento feminista tanto no Brasil quanto no plano internacional, impulsionados pela crescente participação da mulher no mercado de trabalho, articulou-se no sentido de desenvolver as pautas femininas, pleitos como igualdade de condições, autonomia, violência contra mulher, autodeterminação reprodutiva, dentre outras. As décadas de 60 e 70, portanto, representaram um marco para as bases de avanços dos direitos reprodutivos. Na década de 80, o crescente processo de industrialização e urbanização e o aumento do número de mulheres ingressando no mercado de trabalho, foram fatores que ajudaram a impulsionar a demanda por meios de regulação da fecundidade. Somado a isso, em 1984 um grupo de feministas brasileiras retornam do I Encontro Internacional de Saúde da Mulher, realizado em Amsterdã. Neste encontro, conforme relatado no início deste estudo, foi introduzido o termo direitos reprodutivos, em detrimento do conceito até então adotado de saúde da mulher, por trabalhar com uma pauta mais ampla das demandas femininas, não restritas apenas ao binômio mulher-maternidade. Este período foi então marcado pela busca efetiva da igualdade de gênero, com destaque para os termos “violência contra a mulher” e “autodeterminação reprodutiva”. Por óbvio, todos esses esforços teóricos e políticos desaguariam na definição dos contornos dos direitos reprodutivos. Oportuno destacar que, desde meados da década de 70 e de 80, no âmbito das relações internacionais, muitos países, tal como os EUA, olhavam para países em desenvolvimento como o Brasil com olhos de preocupação em relação ao crescimento populacional. Por conta disso, neste período houve significativas aplicações de recursos externos no Brasil voltados para projetos de planejamento familiar, geridos por instituições privadas. Os principais métodos ofertados, além de contraceptivos, eram

métodos irreversíveis, tais como esterilizações cirúrgicas e laqueaduras tubárias, os quais eram, curiosamente, dirigidos às camadas mais pobres da população. Somente anos depois, em 1991, por meio de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, instaurada no âmbito do Congresso Nacional, é que irá se concluir que a prestação desses insumos, por estes entes privados, se deu de maneira inadequada e sem as informações necessárias, além de terem se expandido, principalmente, sob as regiões mais pobres do país, tudo isso sem a fiscalização governamental. 19 A partir da década de 80 então o discurso brasileiro passa a ser o de neutralidade política quanto à dinâmica populacional, recusando, assim, ingerências políticas sobre as metas demográficas. Esta foi, aliás, a posição levada pelo Brasil à conferência de Cairo.

Contudo, os anos 80 foram marcados pela luta da redemocratização, tendo as reivindicações das mulheres se esforçado especialmente durante este período de mudança para ganhar espaço e disseminar suas pautas. Com a influência das Conferências realizadas no plano internacional, este novo discurso para a reprodução se consolida, baseado nos princípios do direito à saúde e no respeito à autonomia. Todas essas mudanças proporcionariam em 1993 a substituição do Programa de Saúde Materno-Infantil, duramente criticado pelo movimento feminista brasileiro e pela reforma sanitária por centrar-se no binômio mãe-filho, pelo Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, PAISM, o qual trouxe uma visão integrada de saúde, destacando a necessidade de atender as mulheres em todos as fases de sua vida. Todos esses marcos foram fundamentais para a introdução, em 1988, na Constituição da redemocratização, dos preceitos necessários ao desenvolvimento dos direitos reprodutivos. A carta Magna de 1988 é o marco jurídico da transição democrática do país. No que tange aos direitos reprodutivos, além da consagração dos princípios basilares da igualdade de gênero, da dignidade da pessoa humana, do direito de inviolabilidade da intimidade e da privacidade, trouxe transformações expressivas na defesa do direito ao planejamento familiar, definido em seu art. 226 § 7º nos seguintes termos: (…) o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. Sendo assim, apesar do ordenamento pátrio não utilizar textualmente o termo “direitos reprodutivos”, a Constituição da República ao elencar em seu art. 226, 20 parágrafo 7º, o direito ao planejamento familiar, amparado no princípio da dignidade da pessoa humana, permitiu a introdução, ainda que de forma indireta, da temática dos direitos reprodutivos no ordenamento constitucional. Ocorre que, somente anos depois, em 1996, é que o planejamento familiar veio a ser regulamentado por meio da Lei 9.263/96. No art. 2º da referida lei, o planejamento familiar foi definido como “o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal.”. Ressalta-se, também, a redação do parágrafo único do referido artigo, o qual preleciona que: “É proibida a utilização das ações a que se refere o caput para qualquer tipo de controle demográfico”, mostrando, assim, a proibição no ordenamento nacional da ingerência de questões políticas sobre os direitos reprodutivos. A definição de

planejamento familiar angariada pela Lei 9.263/96 é satisfatória e coaduna com os preceitos internacionais, pois garante o acesso às ações para homens, mulheres e casais, evitando, assim, deixar brechas que viessem legitimar os cuidados relacionados à sexualidade e à reprodução apenas no âmbito dos padrões heteronormativos. Em seu art. 3º, a lei elenca o conjunto de ações que devem ser garantidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), tais como a assistência a concepção e a contracepção, o atendimento ao pré-natal, a assistência ao parto e ao puerpério, ao controle de doenças sexualmente transmissíveis, entre outros serviços de atenção integral à saúde reprodutiva Ocorre que, apesar de todas estas regulamentações terem fortalecido a luta pelos direitos reprodutivos no Brasil, quando vistas em conjunto, percebe-se que algumas propostas trazidas tanto pela Constituição Federal de 1988, quanto pela Lei 9.263/96, produziram lacunas, as quais merecem ser analisadas. Algumas dessas lacunas são: a atenção ao climatério, às questões relacionadas à reprodução assistida, aos procedimentos do parto humanizado, dentre outras. O presente estudo fez como opção de recorte a análise das lacunas decorrentes da ausência de legislação específica sobre a reprodução assistida. Vamos, primeiramente, compreender onde esta ausência se origina. A Lei do Planejamento Familiar prevê em seu art. 5º que é dever do Estado, por meio do Sistema Único de Saúde, promover condições que assegurem o livre exercício do planejamento familiar, e no art. 9º estabelece que visando a este livre exercício serão oferecidos todos os métodos e técnicas de concepção e contracepção cientificamente aceitos. A Lei 9.263/96 fala, portanto, em assistência à concepção, e, nesse sentido, entende-se incluídas as novas tecnologias reprodutivas. Advém que, em detrimento desta previsão, não existe legislação específica disciplinando a reprodução assistida no Brasil, mas apenas regulamentação ética e sanitária. Esta ausência de legislação específica sobre os procedimentos de reprodução assistida gera inúmeros problemas de insegurança jurídica quanto ao uso da técnica. Uma das principais tensões decorrentes deste fato é o problema da elegibilidade às técnicas de reprodução assistida, assunto que será trabalhado ao longo do presente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. RESOLUÇÃO CFM Nº 1.358. NORMAS ÉTICAS PARA A UTILIZAÇÃO DAS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA. 1992.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 3510, RELATOR MINISTRO AYRES BRITTO, JULGAMENTO EM 29.05.2010. DISPONÍVEL EM . ACESSO EM 01 DE MARÇO 2016.

Autor:

Prof. Dr. Rinaldo Melo.

 

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