Essa escola aviva em mim a capacidade de mitigar os sentimentos do mundo. Aqui eu não posso pensar muito na situação da África ou acolá, pois as matérias, os assuntos lecionados em sala de aula já não mais concedem em nossa grade curricular, espaço à fome que lá matou milhões, nem a daqui que ainda mata — enquanto vários gargalham sobre alguma coisa que não consigo deixar de dar atenção.
De fato, aqui é uma selva de concreto, e os que estão no topo da cadeia alimentar também estão no topo dos prédios gentrificados. Eu daqui de baixo, na calçada toda marcada pelo lixo, cercado pelas sarjetas que acumulam as marcas do desgosto a céu aberto, olho para esse sol e penso que esse sim é o ser mais justo que um átomo criara, ou um deus, ou quem sabe uma explosão. Esse ser inebriante, nas praias bronzeia algumas peles e queima a sola dos pés dos ambulantes que rodeiam-as como incômodas moscas, vendendo-se e revendendo o que parecia não ter preço, a sua força e as vossas asas, se é que algum deles têm o tempo para dedicar à imaginá-las.
Li ontem que prenderam o ex-ministro da Educação. Não falaram disso em sala de aula, pois é comum para a gente há séculos, ver um novo nome em negrito estampado nas manchetes estar acompanhado por uma charge sobre o mesmo, que futuramente estará nas páginas de história ou gramática dos livros didáticos do CIEP, mas que ninguém entenderá.
Essa quietude entre os estudantes concede-me um peso sobre os olhos. Fecho-os por um momento e vejo vários invadindo o Senado, e lá no púlpito alguém reclamava o direito de todos terem alguma terra para dizer-se sua; algum sujeito para chamar de herdeiro; algum reabilitado podendo tornar-se algum formado […] mas aqui eu ainda estava.
— Abri de todo os olhos quando o barulho do ônibus aproximou-se.
Meu ônibus chegou. Relutei e repensei em ceder o meu assento à senhora que subira a pouco. Acabei cedendo, e estou de pé agora. Esqueci por um breve momento sobre o que, a pouco, pensava, mas tive que me recapitular.
Daqui à minha casa, a paisagem que nunca mudava, agora altera-se rapidamente. Não há como postergar os projetos de altas cifras que competem entre as áreas intocadas do verde. Ergueram no Camorim prédios de um dia para noite. O Açude virou ponto para fotos do Instagram, e para muito lixo, muito lixo mesmo Os ônibus lotam quando param no Conjunto Habitacional do César Maia.
— Tenho que chegar perto da janela, bem em cima do lugar para os cadeirantes. Por que cedi o lugar? — disse enquanto olhava pela janela.
Todos que entram, os que burlam a catraca, trajam uniformes municipais. São crianças que sorriem diante da situação em que encontram-se, mas sem nenhum discernimento do que é situação, e o significado da palavra discernimento.
Sem saber dos inconformados com as manchetes, com a indiferença do sol sobre as flores, com os risos diante da desgraça, a política imutável do país, o verde sumindo, os inconformados com a escola […]
— Perdi-me lendo o breviário urbano.
— Amanhã, não vou para escola. — disse-me enquanto caminhava para dentro da favela.
Autor:
Gabriel Vidal Guedes