20.1 C
São Paulo
domingo, 1 de setembro de 2024

Memórias: o menino sem estrela.

Depois de alguns escritos pensei ser necessário esclarecer – antes que os idiotas da obviedade apareçam – que eles não são nada além de uma tentativa de cópia das memórias de Nelson Rodrigues. Mutatis mutandis, é claro. Têm um pouco de autenticidade apesar de serem cópias. Tomei-o como um dos escritores que desejo se não escrever como ele, pelo menos entender integralmente seu estilo e sua composição literária. Gosto muito da escrita rodriguiana (nelsoniana soa melhor). Ao lado do de Machado, é um dos poucos estilos verdadeiramente brasileiros em nossa literatura. Não descredibilizando aqueles que fizeram obras ótimas no consagrado estilo europeu, entretanto acredito que um povo precisa de uma forma, uma maneira de expressão própria que se identifica com seu povo. O sarcasmo e a ironia, o humor de maneira geral compõe essencialmente o espírito brasileiro como a franqueza compõe o espírito alemão, ou a cordialidade, o francês. Apesar dos pesares, o espírito brasileiro é alegre. Talvez até demais em alguns momentos que necessitam de maior seriedade a respeito de matérias relevantes.

Mas esse não é o tema do texto.

Nelson Rodrigues começou a escrever suas “Memórias” já com seus 55 anos. Teve uma vida conturbada, com altos e baixos. Passou fome, quase ficou desabrigado, mas também morou nos melhores bairros do Rio de Janeiro, pegou táxis para atravessar a rua, teve amizade com influências e figuras históricas. Uma vida que deve ser contada, que tem substância real, histórica, cultural e literária.

Acredito que o leitor deva imaginar que me é extremamente dificultoso imitá-lo. Vivi não mais que um terço que Nelson Rodrigues viveu. Experienciei não mais que um porcento do que ele experienciou. Escrevi não mais que um duzentos avos do que ele escreveu. Soma-se a isso o fato de eu não ter boa memória – já enunciei isso brevemente em um escrito – e chega-se à conclusão de que eu estou empenhando esforços em vão, no lugar errado. De fato, me é cansativo recordar. Esforço-me o máximo possível para no fim das contas alcançar memórias não tão temporalmente distantes assim e muitas vezes cotidianas, sem nenhum acontecimento  que a torne especial ou relevante para fazer parte do texto. A produção é para mim um exercício de reminiscência dos meus primeiros anos de consciência e de minha juventude. Algo que no momento está fresco na memória e que eu tenho o intuito de preservar. Quase que uma construção artificial de memória.

A recordação é dificultosa porquanto não tive experiências de vida marcantes. Ninguém extremamente próximo a mim morreu, nunca me mudei de cidade, nunca me envolvi em problemas gravosos, nunca tive uma paixão tão intensa. Nada do que chamam de memorável. Nenhum drama que justificasse a recordação e quem dirá um mísero parágrafo. Porém, um dos primeiros textos que li de autoria de Nelson Rodrigues continha o seguinte trecho:

“Imaginem vocês que tive ontem, na esquina de São José com Avenida, uma experiência, e grave. Antes de prosseguir, porém, devo explicar que, para mim, nada é intranscendente. Pode ser um fato de infinita, exemplar modéstia. Digamos que a nossa galinha pule a cerca do vizinho. Pode haver uma peripécia de mais delicada humildade? Não. E, todavia, esse incidente, em que pese a sua aparente irrelevância, tem um toque de Graça e de Mistério. Se bem me lembro, é de Bernanos um romance que termina assim: — ‘Tudo é Graça’”.

Se ele de fato acreditava que tudo tinha algo de transcendente ou se foi só um recurso para poder desenvolver o resto da história, eu não sei, mas carrego isso comigo. Só assim consigo escrever. Só assim me aproximo do estilo, do reacionarismo, da graça, nos dois sentidos, da linguagem rodrigueana e da literatura brasileira. Na verdade, me aproximo da vida mesma em toda sua significação.

 Acreditava piamente que a memória era construída de forma automática, sem que houvesse necessidade de uma posição ativa do espírito para originá-la. Uma coisa as vezes aleatória e outras relacionada com a importância do acontecimento. A sério, alguns fatos são tão marcantes que independente da nossa vontade se transformam em memória, mas existe a possibilidade de se criar uma, seja ela do que for. Isso se dá através da observação do transcendente de que fala Nelson. O jeito com ele compõe o texto, além de ser idêntico ao processo de reminiscência de qualquer um, mostra como no meio de tantos acontecimentos marcantes aqueles de menor “relevância” histórica ou cultural, os que se sobressaem são justamente os irrelevantes. Em certa medida tudo se torna importante a ponto de ser lembrado. O mais simples acontecimento cotidiano pode ficar pra sempre gravado na memória. Por isso que seu “Memórias” é, talvez, a melhor compilação de crônicas: ele passou a vida construindo memórias através dos primeiros escritos de sua vida. Crônicas são produzidas a partir da investigação dos mais irrelevantes fatos na vida do homem. Crônicas criam memórias.

É um tanto interessante tentar olhar para a realidade dessa forma, ainda mais quando se está acostumado com a transitoriedade e a rapidez de tudo. Com a falta de valor das ações cotidianas. Fixando algo na mente, valorando-o, compreendendo-o minuciosamente, perguntando-se sua razão de ser, obrigando-o a virar memória. Claro, se fizer isso com tudo que lhe aparece você enlouquecerá, mas na medida do possível é um bom exercício para ver além da materialidade dos fatos e para quem deseja escrever. Pelo menos tem funcionado para mim.

Autor:

Filipe Pereira Mauricio 

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Leia mais

Patrocínio