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segunda-feira, 22 de julho de 2024

Meu filme inesquecível: carruagens de fogo[1].

Sempre tive a nítida impressão de que filmes são mais que mero conjunto cinematográfico, sonoro e interpretativo de histórias criadas para entreter o público; na verdade comungo de ideia de que filmes são mensagens a serem transmitidas para a posteridade, como podemos ver em “Cidadão Kane”, ou “E o Vento Levou”, e muitos outros que após assistidos deixam em nós uma marca indelével que levaremos ao longo de nossas vidas. E nesse aspecto, o filme “Carruagens de Fogo” trouxe consigo um amálgama de mensagens e impressões que, tenho certeza, para quem assistiu permanecem em suas memórias até hoje, a começar pelos personagens cuja personalidade e o caráter constituíam individualmente um universo a ser apreciado e compreendido.

Creio que a primeira mensagem transmitida pelo filme reside no personagem de Eric Liddell e sua fé inabalável; acreditando que Deus lhe concedera um dom que impunha a ele a missão de, utilizando-se desse dom ser capaz de propagar sua fé pelo mundo. E essa fé inabalável é posta em prova quando ele se recusa a disputar uma prova que aconteceria em uma dia sagrado, sobrevindo em seu socorro o aristocrata Lord Andrew Lindsay que propõe uma troca de posições em provas permitindo assim que Liddell corresse. Aliás o lema que lhe foi entregue antes da prova (Honrarei àqueles que me honram), é uma ilustração cristalina da determinação ardorosa de Liddell em valer-se de seu dom para catequizar o mundo[2].

Penso que Liddell sentia-se predestinado, pois considerava seu desempenho como atleta uma dádiva divina, razão pela qual ele sentia-se compelido a utilizar esse dom em prol da humanidade, e o trabalho posterior como missionário na China atestou definitivamente esse sentimento de predestinação. Quantos homens ao longo da história da humanidade sentiram-se imbuídos dessa mesma predestinação? Churchill após Galípoli? Kennedy após o afundamento da PT-109? Ou talvez um lenhador que tornou-se presidente de uma nação e conduziu o país em meio a uma guerra civil obstinadamente cultivando o ideal de igualdade entre os homens? O filme deixa claro que essa predestinação estava sedimentada no corpo e na alma de Eric Liddell.

Do outro lado temos Harold Abrahams[3], um inglês de ascendência judaica, cujo pai era um financista mal visto pela comunidade aristocrática inglesa da época e que tinha aspirações a competir nas olimpíadas de 1924 e para isso contratou os serviços de um treinador profissional (Sam Mussabini[4]), algo considerado pouco ortodoxo nos meios desportivos, mas que para Harold significava a diferença entre a vitória e a derrota. Harold Abrahams buscava autoafirmação, respeito e admiração.

Autoafirmação como indivíduo e como membro de uma sociedade preconceituosa buscando seu lugar no seio dela; respeito não por conta da preponderância financeira familiar, mas sim como resultado de seus próprios esforços e dedicação; já admiração representava uma projeção consequente do respeito, selando em definitivo seu lugar no mundo e também na sociedade. E é exatamente disso que trata o filme, desses valores tão vilipendiados e quase esquecidos na sociedade moderna onde o que interessa não é aquilo que somos como resultado de nossos próprios esforços, mas aquilo que temos como resultado de um materialismo cobiçoso e egoísta que vê na riqueza ilimitada uma razão de existir.

Outro aspecto marcante a meu ver diz respeito ao relacionamento dos atletas durante os jogos; em um mundo pós-guerra e mesmo preocupados em competir e vencer, eles não estavam imunes aos efeitos do nacionalismo arraigado que implantara-se em corações e mentes de muitas pessoas, em especial aquelas que detinham alguma forma de poder[5].

E esse sentimento era percebido inclusive no ambiente acadêmico onde aristocratas pedantes viam-se no direito de ditar rumos ideológicos abandonando a essência da academia, assim como no meio político haviam aqueles interessados apenas em demonstrar força e supremacia ante o adversário, pouco importando os meios a serem utilizados para obtenção de uma vitória.

Abrahams e Liddell eram atletas e estavam acima desse clima nacionalista exacerbado, buscando no esporte suas realizações pessoais e cumprindo suas predestinações. Aliás, todo o atleta cultiva um ideal para si, sem que isso possa parecer egoístico, pois também são ciosos dos compromissos existentes com a nação e com o povo; o que realmente conta é o esforço e a dedicação pessoais que fazem do atleta uma pessoa que dedica toda a sua vida a apenas um objetivo: vencer! Não há comemorações pessoais para lugares que não sejam o pódio principal, e a derrota jamais é uma opção.

Em que pesem as diversas críticas cinematográficas sobre o filme, considerado simplista e reducionista demais aos olhos dos “especialistas”[6], e independentemente dos prêmios merecidamente conquistados, o que não se pode perder de vista é a sua essência revelada através da lente de homens que passam uma vida inteira dedicando-se à glorificação de apenas um momento; um momento que ficará gravado nos corações, mentes e também na historiografia da humanidade.

Por fim, cremos que o aspecto mais significativo da película tenha uma relação direta com a necessidades de vermos os atletas como pessoas e não apenas como um resultado, seja ele positivo ou negativo. Há de olhar-se para eles e também para suas vidas pessoais, os dramas vivenciados, a amargura pela derrota e pelo esquecimento, a dor, o sofrimento e as privações que lhe são impostas. Crucial, portanto, é vê-los como pessoas e compreendê-los sob esse prisma e não apenas pela ótica empobrecida do momento.

Jamais se esqueçam de histórias como a de Jesse Owens[7], que calou o ditador alemão, porém não foi recebido pelo presidente de seu país. Não se esqueçam do que ocorreu em Munique no ano de 1972[8], onde o terror calou as vozes do mundo. “O importante não é vencer, mas competir. E com dignidade.”, a frase proferida pelo Barão de Coubertin[9] encerra dentro de si um valor a ser guardado e protegido: a dignidade que deve sempre servir de exemplo para as gerações presentes e futuras.

Em um mundo dominado por selfies, estories, cancelamentos, haters, sucessos voláteis, mentiras e enganos, dignidade, assim como honra perderam-se no tempo; não há mais lugar para sentimentos tão nobres, já que o verdadeiro valor que importa encontra-se no número de seguidores que amealha-se, ou ainda o número de visualizações que nossas postagens recebem. Ou seja, não há mais conteúdo apenas aparência que importa embora não tenha qualquer sentido.

Para além dos significados visíveis e palpáveis acerca dos jogos olímpicos[10] existe algo intangível, mas muito sensível; nas competições, nas vitórias e também nas derrotas é necessário que atletas tenham dentro de si o prazer pela competição saudável, e não apenas por números e resultados; é crucial que tenham a plena noção de que vitórias obtidas por meios ilícitos não são vitórias reais; são apenas ilusões que duram tanto tempo quanto uma mentira. Enfim, é fundamental que todos os participantes, sejam eles atletas, técnicos, juízes ou árbitros, e também a população que assiste guardem em suas memórias o espetáculo representado pelo esporte olímpico e seu significado para as gerações futuras.


[1]https://www.adorocinema.com/filmes/filme-150/

[2]https://esportes.yahoo.com/noticias/carruagens-de-fogo-olimpiadas-harol-abrahams-eric-liddell-070048908.html

[3]https://pt.wikipedia.org/wiki/Harold_Abrahams

[4]https://stringfixer.com/pt/Sam_Mussabini

[5]http://www.usp.br/esportivo/index.php/2015/12/04/analise-filmica-carruagens-de-fogo-1981/

[6]https://www.cineplayers.com/criticas/carruagens-de-fogo

[7]https://www.olimpiadatododia.com.br/curiosidades-olimpicas/242137-jesse-owens-calou-hitler-e-virou-simbolo-contra-o-racismo/

[8]https://pt.wikipedia.org/wiki/Massacre_de_Munique

[9]https://www.olimpiadatododia.com.br/curiosidades-olimpicas/239491-barao-de-coubertin-criador-dos-jogos-olimpicos/

[10]https://www.significados.com.br/olimpiadas/

Autor:

Antonio J. Trovão

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