Depois do trabalho, ele ia conversar com os amigos moradores do sobrado número 44, em uma rua no bairro do Morumbi, SP. Era sagrado, sair do trabalho e ir a República dos “Bodes”, como o casarão era conhecido, no bairro. Na verdade, ele estava enamorado de Sandra, que cursava letras, umas das moradoras da república. E tinha como melhor amigo, Mário, outro morador, futuro químico. Tinha umas dez pessoas morando lá. Sem falar dos frequentadores. Ele ainda menor, na presença daquela turma, que apesar de mais velhos, lhe davam muita atenção, dando-lhe a sensação de ser um adulto, e ele gostava muito dessa condição. Eles já frequentavam a faculdade, enquanto ele, cursava o supletivo. Ele se divertia muito, lá rolava uma cerveja, e outras “coisas” mais. A cerveja ele não rejeitava. As aulas do supletivo, era num prédio a poucas quadras dali, mesmo assim ele sempre chegava atrasado, as aulas, começavam as 19hs e terminavam as 22:30.
Depois da aula ia para a pensão da dona Ema, outro casarão, cheio de moradores misteriosos, jantava e ia dormir.
No dia seguinte, repetia a rotina, trabalhava na construtora, e de tarde ia para o sobrado conversar com seus amigos, e flertar com a Sandra. Eles eram jovens e alegres, amantes da cerveja, que não podia faltar nas conversas. Uma festa diária. Não tinha finais de semana ou feriados, era sempre festa. Todos viviam ali, longe de suas famílias, por conta da faculdade.
Na porta de entrada estava escrito na parede, república dos “Bodes”, o que despertava curiosidade nos vizinhos, e em quem passava pela calçada.
Numa tarde dos anos 80, ele deixou o trabalho, como sempre fazia, ali pelas dezoito horas, e foi correndo para ver a Sandra e seus amigos da república.
Percebeu que algo estranho acontecia. Muitos carros estacionados nas imediações. Não tinha ninguém na porta. E quando entrou, no andar térreo do sobrado, um vazio absoluto. Um silencio total. Chamou por Sandra, por Mário. Nada! Sem resposta. Entrou de mansinho, e vasculhou com os olhos toda a parte de baixo do sobrado. Ninguém! Ouviu uma voz. Suba as escadas, e vem para o andar de cima. Meio cismado, por não conhecer aquela voz, ele começou a subir, degrau por degrau, com muita cautela. Na sua a cabeça a pergunta, o que está acontecendo? Já no último degrau uma surpresa; policiais armados, o esperavam. E uma visão de medo tomou conta do seu ser, por um momento pensou em fugir, mas não teve coragem. Todos seus amigos estavam enfileirados encostados na parede, inclusive a Sandra. Os policiais portavam metralhadores, daquelas pequenas, e um deles, com a voz de comando, disse: Vai para a fila. Encoste-se na parede. Ele, olhando para os companheiros amedrontados, sem entender nada, obedeceu.
Sente-se ali no canto, com as costas na parede. Lá estavam todos. Sentados e em silencio. Ninguém dizia uma palavra. Todos com expressão de medo nos olhos. Ficaram ali sentados, por um bom tempo, até que todos os moradores da república chegassem. Não era permitido conversar. Ninguém dava um pio.
Passou-se algum tempo, acompanhados por um policial, dois a dois eles foram levados para dentro dos carros que estavam estacionados na rua, frente ao sobrado. Não havia dúvida, eram policiais à paisana com carros não oficiais, carros comuns. Dentro do veículo, eles tinham que se sentar, com as mãos na cabeça abaixada, e seguiam em silencio; só se ouvia o barulho dos motores acelerados dos carros, que se confundiam com as batidas do coração acelerado pelo medo.
Ele foi um dos últimos a ser colocado em um dos carros. Não se sabia para onde estavam levando-os.
Depois de muitos anos, ele descobriu que foram levados para o quartel da polícia militar, da Tutóia, na Vila Mariana. Lá, sentados encostados na parede, formavam uma fila que ia se esvaziando. Um a um iam sendo conduzido a outra sala, a sala do delegado. Quem ficava na espera, tinha na mente o pior. O medo tomava conta. Na realidade, estava apavorado! Porque não sabia, o que ia acontecer. Os que iam não voltavam, saiam por outro corredor, outra porta. Não tinha como saber o que acontecia. Simplesmente quem ia para aquela sala, não voltavam. Frio na boca do estomago. Chegando a vez dele, o nervoso tomou conta. Levado à sala do delegado… Ouviu o seguinte aviso” como você é menor, tem carteira assinada, e é um estudante, vou deixar passar desta vez, mas procure melhores companhias. Esta república está sendo monitorada há tempo, estávamos atrás de subversivos e um traficante, de fama internacional. Não acredito que você faça parte do esquema, você me parece um bom rapaz, por isso, vou deixá-lo ir. Conhece o provérbio “Diga-me com quem andas e te direi quem tu és”. Vou livrá-lo desta vez. Tinha uma cesta com fruta no canto da mesa, ele pegou uma maçã e ofereceu ao rapaz, que saiu de cabeça baixa.
Boa sorte garoto, disse o delegado, você tem o mundo ainda pela frente, essas pessoas não servem para serem seus amigos…
Autor:
Jaeder Wiler