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quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Andarilha dos dons

O dom de alguém pode morrer? Talvez um dom seja como a Bela Adormecida. Basta que o príncipe que habita em nós aceite o desafio de desfazer os encantamentos da prostração para, então, salvá-lo do sono profundo.

Ao longo da vida, vi dons adormecerem por magias cotidianas: a falta de reconhecimento, de estímulo, a mecanização das produções, a dominação tecnológica. Triste realidade… ainda mais para mim que sempre fui encantada por dons. Não sabia bem qual era o meu. Mas não tinha nenhuma dificuldade de reconhecer e querer, avidamente, aprender um quando encontrava em algum solo humano. Peço perdão aos mais críticos, pois não farei distinção entre “dom” e “talento” e deixo aqui o meu agradecimento à Licença Poética. Dito isso, apresento-me: Prazer, sou a Andarilha dos dons. Venha comigo rememorar estradas de afetos.

Meus irmãos gêmeos nasceram com mãozinhas divinas. Deus fez com as suas próprias mãos o homem de carne e osso. Os gêmeos, com coordenação motora celestial, inventaram os bonecos de papel. Antes, tudo era sem forma e vazio. Não tínhamos brinquedos. A escuridão da pobreza eclipsava a diversão. Todavia, o poder da criação de dois pequenos desenhistas nos livrou do caos, trouxe luz e povoou as tardes de brincadeiras, de risadas, de improvisos, de bonequinhos de papel. E eu vi que tudo isso era muito bom. Quis aprender. Eduquei meus dedinhos para fazerem os primeiros rabiscos nos moldes daquele minúsculo universo de Adões e Evas. Tentativas e mais tentativas. Consegui, minimamente, criar uns “serumaninhos” para interagir. Mas, como Andarilha dos dons, não teria paradeiro. Conheci tudo na superfície. Meus irmãos não. Eles foram além, embora hoje o dom adormeça com o encantamento das obrigações, dos compromissos, de tudo um pouco que chega com o adultecer… sonho em vê-los novamente acordar.

Noutro momento, a Andarilha pisou no solo das composições musicais. Outro irmão (sim, meus pais não tinham televisão!) inventava cada letra, cada combinação melódica que me cativava. Fixei minhas tendas. Tentei rascunhar uma rima aqui, esboçar uma dor ali. Tudo muito na peregrinagem. Logo, logo partiria dessa geografia como o fiz na terra dos desenhos.

Engraçado… acho que hoje em dia, já adulto, meu irmão encontra o espelho de sua alma no canto dos pássaros. Parou de compor. Agora se inspira com as composições do sabiá, do rouxinol, do canário, do trinca-ferro, do assobio do vento, da algazarra da chuva sobre o telhado… Ele acorda, ainda no crepúsculo, não mais para escrever canções, mas, sim, para ouvir a melodia do Criador ressoando em sua criação. Segundo Rubem Alves, “ouvir os sons no mundo é uma felicidade que somente os artistas recebem por nascimento”. Meu irmão, sem dúvida, é um grande artista.

Não para por aí. Via outro irmão “violando o tocão”. Não errei não. É isso mesmo. Quando íamos tocar violão, dizíamos brincando “vamos violar o tocão”, uma maneira particular de interação que uma família inventa para resgatar o entusiasmo perdido na comunicação rotineira. Pois bem, eu também “violava o tocão” – para ser bem sincera, mais violava que tocava. No final de todo esforço, saía sempre a mesma música – a única que sei até hoje.

Novamente, permaneceria na orla de um dom. Fiquei assombrada com as ondas das pestanas. Que coisa mais cruel para um aprendiz! Já o meu irmão aguentou os caixotes do desafio. Surgiram hematomas no corpo dos dedos. Venceu e lançou-se às profundezas, respirando os mares das notas musicais. Hoje, toca muito bem, porém com pouca frequência. Temo que mais um dom adormeça.

Continuo uma andarilha. Ultimamente, tenho me permitido bisbilhotar o território da escrita poética. É claro que, antes de entrar por essa vereda, cruzei as vias da leitura. Um irmão tinha o curioso dom de ler, uma forma especial de se aproximar do cheiroso e também misterioso Livro. As letras pareciam subir à sua compreensão como um bálsamo. Ele lia. Ele suspirava. Cafungava até… Era um particular exalar de perfume alfabético. Aquilo me intrigava. Quis o mesmo. Fiquei tardes e mais tardes diante do Livro na tentativa de sentir o mesmo cheirinho, de palavrinhas perfumarem minha imaginação. Ah… aquele Livro encheu a minha atmosfera interior de suavidade, de esperança, de graça. Conheci as letras de salvação.

O prazer no solo da leitura foi uma ponte para o da escrita. E olha… aqui estou eu escrevendo. Não sei se vou parar de andar e me fazer moradora daqui. A verdade é que, aconteça o que acontecer, não me arrependo de nada, de cada andada, de cada parada. Faria tudo outra vez. As estradas do desenho, da música e da leitura me levaram a compartilhar momentos preciosos com pessoas queridas, a minha família. Aprendi muito. A peregrinação me presenteou com retratos feitos de memórias afetivas. Sim, memórias afetivas que, para Cecília Meireles, são “adornos de um mundo mágico, ainda vivo e sensível” e que, para mim, servem como material bruto a ser refinado na arte do escrever.

Por tudo isso, sou muito feliz. E compreendo a importância dos dons – que eles não adormeçam!

Autora:

Luciana Fatht

 

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