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domingo, 17 de novembro de 2024

A segurança das urnas

A segurança das urnas

Laerte Temple         

Se tem uma coisa que incomoda muita gente é a dúvida, embora haja quem prefira a dúvida à certeza absoluta, pois sempre restará a falsa esperança que a ilusão propicia. Os pragmáticos preferem uma resposta definitiva, qualquer que seja. Nada de dúvida, “duela a quem duela”.

Para desespero geral, as mudanças cada vez mais constantes dos tempos atuais dificultam qualquer certeza definitiva. Tudo é sempre dúvida e a única certeza é a mudança. Ontem não tem “H”. Hoje tem “H”. Ou seja, de um dia para o outro, tudo pode mudar! “Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia”, canta Lulu Santos. Corretíssimo! Certezas absolutas de hoje serão questionadas, transformando-se em novas dúvidas até surgirem novas certezas, e assim por diante.

Existem milhares de exemplos de que certas tecnologias modernas não são nem melhores nem mais confiáveis que as antigas. Os apreciadores da boa música adoram a qualidade do som do vinil, superior à do CD e MP3. Músico raiz prefere instrumento acústico ao eletrônico. Os cinéfilos até assistem filmes na TV ou celular, porém não dispensam o tradicional telão do cinema de verdade. Um apreciador de respeito não toma café de cápsulas, mas só o tradicional, de coador de pano ou expresso de máquina italiana. Os “pés de valsa” também dançam ao som digital, mas preferem bailes com música ao vivo. Sempre haverá conflitos e controvérsias entre as novas e as antigas tecnologias. Essa polêmica nunca terá fim.

Recentemente houve muita discussão a respeito da segurança das urnas. Durante meses não se falou em outra coisa e o assunto dividiu opiniões. Houve muito bate-boca no Congresso, na mídia, nas redes sociais e nos grupos de WhatsApp. Conheço parentes que deixaram de se falar e gente que desfez amizade de décadas, inclusive namoro, tudo por causa de opiniões divergentes sobre urnas.

Os céticos preferem o sistema antigo, obsoleto, porém seguro. Os descolados, para quem é preciso inovar constantemente, preferem a tecnologia moderna e criticam os conservadores, a elite do atraso. Os debates foram intensos em todos os fóruns:  acadêmico, político, militar, técnico, jurídico, jornalístico, sexual e até mesa de bar. Houve campanhas a favor e contra. Teve até torcida organizada e não faltaram piadas e memes circulando por aí. Mas ninguém falou com os russos! Desculpe, mr. Putin. É só um dito popular tupiniquim. Acho curioso que os principais interessados não tenham sido ouvidos formalmente. Até parece que o assunto não lhes diz respeito.

Nicanor, assessor jurídico aposentado da Justiça Eleitoral, é hoje consultor independente e ferrenho adepto do sistema convencional. É contra a urna moderna e torce o nariz sempre que alguém afirma que são seguras, confiáveis e invioláveis. Quando dizem que foram feitos muitos testes e que até hoje urna alguma apresentou problema grave ou foi violada, pelo que se sabe, Nicanor contra argumenta: mas e o que não se sabe?

O experiente consultor participou de diversos debates e mesas redondas, escreveu artigos, deu entrevistas e proferiu várias palestras sobre o tema. Sugeriu inspecionar o processo de fabricação das urnas, obter laudos dos testes de confiabilidade, checar a constituição, mas o tempo se esgotava e uma decisão definitiva teria de ser tomada. Nicanor não entregou os pontos facilmente e argumentou até o último minuto, mesmo sabendo que se o processo se prolongasse não haveria tempo suficiente para as providências. Contrariado, admitiu que estava só nessa parada.

  • Nicanor, não entendemos os motivos dessa sua resistência.
  • A possibilidade de vazamento existe. Os órgãos oficiais dizem que não há  casos registrados, mas quantos casos não registrados estão por aí?
  • Para com isso Nicanor. As urnas são seguras. Aceita que dói menos.
  • Se fosse verdade, o mundo inteiro estaria usando.
  • Isso depende da cultura, da vontade do povo e das leis de cada país.

Nicanor forçou a barra e conseguiu uma saída honrosa. Decidiu que aceitaria a urna se fossem aumentadas as garantias, como por exemplo um nicho inviolável para seu armazenamento.

  • Tá bom Nicanor. Você venceu. Aceitamos o nicho – disse a cunhada.
  • Fico feliz. Assim é bem melhor. Muito mais seguro.
  • Agora deixa de frescura, pega a urna e vamos até o crematório buscar as cinzas da mamãe – implorou a esposa.
  • Vocês vão. Eu vou inspecionar o nicho inviolável.

As irmãs foram ao crematório buscar as cinzas da mãe e Nicanor ficou em casa verificando o revestimento interno de chumbo do nicho inviolável de concreto que mandou construir no quintal, embaixo do canil dos Pit Bulls Nero e Calígula. Não confio nessa droga de urna. Se a velha conseguir vazar, os meus meninos estarão atentos. Eles nunca foram com a cara daquela jararaca.

Laerte Temple
Laerte Temple
Administrador, advogado, mestre, doutor, professor universitário aposentado. Autor de Humor na Quarentena (Kindle) e Todos a Bordo (Kindle)

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