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terça-feira, 30 de julho de 2024

A nossa insignificância.

Nunca foi tão fácil viver. Essa afirmação será considerada por alguns como um ultraje. Mas a verdade é que hoje qualquer indivíduo da classe média das grandes metrópoles vive em um conforto que nenhum imperador romano ou rei francês ousou sequer sonhar. Transporte, alimentação e entretenimento – tudo isso disponível em questão de minutos, até mesmo segundos. O afegão médio tem tudo o que quer e precisa para viver como um lorde. Sua ordem é sempre ouvida pelos seus súditos e respondida com um “Sim, senhor!” Diante dessa imagem que expressa todo seu falso reinado refletida no espelho, o homem se pergunta: há algo mais poderoso do que eu?

Pobres iludidos são todos aqueles que acreditam ser senhores do mundo porque conseguem pedir comida sem sair de casa, pular um anúncio indesejado ou ter sempre um chofer a sua disposição. Acredita-se fielmente que o homem domina o mundo até que alguma catástrofe natural ou evento inesperado relembre sua posição. Uma chuva num dia ruim é capaz de fazer ruir todos os nossos planos. O olhar para a realidade como ela é, e não como ela se apresenta vista pelas lentes do conforto, faz o homem tremer, choramingar e queixar de seu destino. O primeiro e mais singelo evento que fuja de seu controle representa o fim de tudo, o conflito entre o “eu” e o mundo, o fardo herdado de Adão, a realidade suprimindo o ser. Tudo isso, obviamente, não passa de um exagero dramático. A realidade, apesar de muitas vezes fazer questão de mostrar-nos a nossa insignificância, constitui a base mesma da nossa experiência. É através dos dias que nos mostram a nossa insignificância que tomamos consciência do lugar que a nossa existência ocupa.

O homem, na sua pequenez, querendo controlar toda a realidade que o circunscreve, ao invés de se localizar nela e agir conforme as circunstâncias o permitem é como o marinheiro que tenta acalmar o mar por inteiro ao invés de deliberar ações que o protejam no próprio navio; ou como o agricultor que deseja alterar e adaptar o clima ao seu plantio, e não o contrário. Quando vista esta problemática na forma de analogia, é fácil a identificação da sua impossibilidade. Porém, deturpada da forma como é nossa visão da realidade devido ao costume com o conforto, identificar a raiz do problema é uma missão hercúlea.

Além disso, todas as searas da vida e seus aspectos se tornam completamente disformes a partir da compreensão alterada da realidade. As relações sociais não tem significância real, os valores de nada valem se não forem úteis e se espera que tudo que exista se comporte de um jeito previsível e ordenado que satisfaça a vontade do “eu”. Situações que frustram nossos planos quando temos convicção de sua concretização e do desenrolar do futuro são tão desesperadoras quanto maior for a convicção. Lembremos de Paulo Honório no romance São Bernardo de Graciliano Ramos, que após conquistar tudo que podia através do capital, se frustra ao ponto de quase enlouquecer ao se deparar com algo que não é possível ser conquistado através do dinheiro: o amor de sua mulher. Ou mesmo de outro personagem do romance Angústia do Velho Graça, Luís da Silva, que, após o fracasso de seu casamento devido à impossibilidade de lidar com as decisões e ações da noiva, torna-se um monomaníaco assassino. Não é surpresa que cada vez mais pessoas precisem de tratamento psicoterapêutico ou busquem formas “alternativas” de lidar com frustrações.

Entretanto, como é verificável principalmente nos indivíduos de minha geração, que estão acostumados com o imediatismo absoluto das redes sociais e com o recebimento incessante de estímulos e informações, o tratamento psicoterapêutico e a orientação de métodos alternativos não surtem efeitos positivos a longo prazo, mas muitas vezes criam uma relação de dependência entre o paciente e o tratamento, visto que poucos psicólogos possuem o conhecimento filosófico necessário para tratar o que os antigos chamavam de “doença da alma” e que são atualmente denominadas como enfermidades psíquicas ou psicológicas, como a depressão, a ansiedade e o estresse. Ao transpor a origem dessas doenças exclusivamente ao âmbito psíquico ou físico-químico neurológico, quebra-se o elã entre realidade e a psique, impossibilitando a compreensão da problemática e o profissional que busca solucionar o problema do paciente acaba desassociando-o ainda mais da realidade concreta na qual ele deveria estar presente.

 Como bem esclareceu Lavelle em “A Presença Total” (2012)1: “A vida não pode recuperar a confiança em si mesma, não pode adquirir gravidade, força e alegria sem que seja capaz de se inscrever num absoluto que não lhe faltará jamais porque lhe está inteiramente presente […]”

Que percebamos nossa insignificância para que seja possível nos enxergarmos como partes integrantes da realidade e não como inimigos, senhores ou escravos dela.

Referência:

1 LAVELLE, Louis. A Presença Total. Tradução: Carlos Nougué. 3. ed. [s.l.] É Realizações, [s.d.].

Autor:

Filipe Mauricio

4 COMENTÁRIOS

  1. Embora tenha opiniões divergentes à alguns pontos, concordo com o argumento de que tentamos à todo tempo mudar o mar.

    Em meu pensamento: o ser humano desde seu princípio e instintos primitivos criou, obteve e usou recursos (ou outros seres humanos ou não) ao seu próprio favor. O que cria a tendência ao costume ou ideia de “poder”. Se não o temos, o almejamos à qualquer custo.

    Nos frustramos ao fato das coisas não acontecerem como queremos, muitas vezes, até mesmo com o simples imaginar da adversidade ou fracasso. É onde estagnado, o ser humano se preocupa mais com as circunstâncias, do que em encontrar em si mesmo a forma de lidar e adaptar-se ao desfavorável. O que gera sua maior glória, gera também sua ruína interna.

    Ótimo artigo, parabéns e muito sucesso ao autor!

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