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terça-feira, 23 de julho de 2024

Paixão não justifica a violência

Poderíamos, nesta semana, falar das partidas eliminatórias da Libertadores, da final da Recopa entre Palmeiras e Athletico Paranaense ou abordar as emocionantes partidas que a milionária Copa do Brasil nos proporcionaram, sempre acompanhadas das tradicionais zebras como as desclassificações, por exemplo, da Chapecoense e do Grêmio para o Moto Clube do Maranhão e o Mirassol do interior paulista, respectivamente. No entanto, o futebol deixou as páginas esportivas para povoar a seção policial.

Em apenas três dias, entre quinta e sábado de Carnaval, ocorreram quatro atos graves de violência. Todos eles tiveram como palcos grandes capitais do país, em diferentes regiões e que envolveram clubes tradicionais e populares. A bela Curitiba, uma das cidades com melhor qualidade de vida do Brasil, assistiu à invasão e a luta campal entre torcedores, jogadores e policiais na Vila Capanema, quando o Paraná foi rebaixado no estadual. Se retornarmos alguns dias em relação à cronologia proposta, para 16 de fevereiro, o clássico entre Coritiba e Athletico assistiu ao conflito entre os torcedores dos dois clubes dentro do Couto Pereira e que, após a partida, se espraiou para as ruas adjacentes ao estádio.

No sábado de Carnaval, em Porto Alegre, o ônibus do Grêmio, em seu caminho para o Beira-Rio, foi apedrejado por torcedores do Internacional, ocasionando a hospitalização de Villasanti, atleta do tricolor. Dois dias antes, em Salvador, o ônibus do Bahia foi atingido por explosivos atirados por seus próprios “torcedores” ferindo, no rosto, o goleiro Danilo Fernandes.

No mesmo dia em que ocorreu o covarde ataque ao ônibus do Bahia, o elenco do Náutico desembarcou no Aeroporto dos Guararapes, em Recife, sob protesto de integrantes de uma torcida organizada que gritava de forma intimidadora “a porrada vai comer”. No dia seguinte, a diretoria do clube pernambucano divulgou as imagens de uma das vans que transportou parte da delegação com os vidros quebrados.

Já destaquei em inúmeras crônicas que os esportes e, consequentemente, o futebol, não estão alijados dos problemas e desafios que vivenciamos em nossa sociedade. A ideia de que somos um país pacífico foi uma das maiores balelas históricas já construídas e divulgadas. Me atrevo a afirmar que ela é uma precursora das atuais Fake News.

 Se não vivenciamos um conflito entre nações desde a funesta Guerra do Paraguai (1864 – 1870), internamente a realidade é bem distinta. Usando apenas a  memória das aulas que ministrei na Universidade sobre a história do Brasil republicano, montei, com facilidade, a seguinte lista: a Revolta da Marinha, a Revolução Constitucionalista, a Guerra de Canudos, os Movimentos Tenentistas de 1922, a Revolução de 1930, a Intentona Comunista, as Revoltas de Jacareacanga e Aragarças, o golpe de 1964 e as torturas perpetradas pela ditadura e, para finalizar, a violência urbana que, se perpassa todo o período, certamente se acentuou nas últimas quatro décadas.

Meu amigo leitor, perceba que a lista elaborada não destacou outras modalidades de violência cotidiana, ela tratou apenas de fatos que se fazem presentes em qualquer bom manual de História do Brasil. Enfim, não somos uma sociedade pacífica. Como os esportes, dentre eles o futebol, não formam um mundo separado, uma ilha isolada do restante do país por um mar infinito e profundo, é óbvio que os problemas, os desafios e as soluções para qualquer uma das nossas questões sociais, dentre elas a violência, acabam por envolvê-los.

O problema é extremamente complexo e não é possível debatê-lo de forma mais profunda em uma simples crônica. Mas alguns breves apontamentos podem ser delineados. Há, sem dúvida, uma questão que envolve a política de segurança pública. É dever do estado garantir que os seus cidadãos possam usufruir com tranquilidade de seus momentos de lazer e ir ao estádio deveria ser um desses momentos. Por outro lado, cabe a ele também garantir que os trabalhadores, em nosso caso, os jogadores de futebol e todos os outros profissionais que gravitam em torno do espetáculo, possam exercer suas atividades em segurança.

Para isso, precisamos contar com uma polícia preparada para atuar em grandes eventos, atuando com as ferramentas de inteligência que permitam identificar e coibir os marginais que, em nome do amor pelo clube, atuam à margem da lei. Será de sua responsabilidade também elaborar os planos para a chegada e saída dos torcedores, dos ônibus das delegações, da segurança ao redor dos estádios, entre outras funções que podem reduzir os problemas decorrentes da violência.

Todas as medidas de segurança, de inteligência, custam dinheiro e implicam em custos mais altos e, por consequência, em ingressos também mais caros. Infelizmente, o santo sempre paga pelo pecador e o futebol acentuará uma trajetória que ele já delineia há tempos, a de ser cada vez mais excludente.

Os dirigentes dos clubes também precisam rever suas relações, muitas vezes perniciosas nos mais diversos aspectos, com suas torcidas organizadas que, normalmente, mas nem sempre, como foi o caso do apedrejamento do ônibus do Grêmio, estão envolvidas nos casos de violência no futebol.

Para finalizar, não é possível continuarmos naturalizando as violências que ocorrem no futebol vinculando-as à paixão. Sim, como tão bem ressaltou Nelson Rodrigues, futebol é paixão e sem tal característica ele perderia o seu encanto. No entanto, na origem da palavra paixão, encontraremos pathos, ou seja, doença. A submissão às emoções e às paixões chegou, por Immanuel Kant, a ser considerada uma doença da alma. No entanto, é possível e saudável viver o pathos, logo o amor, a raiva e todos os demais sentimentos que habitam a alma humana de forma não patológica.

Se, por exemplo, nas relações de gênero, é cada vez mais indefensável a naturalização da violência masculina em virtude da forte emoção, ou da paixão, o mesmo deve valer para qualquer aspecto da natureza humana, dentre eles o futebol. O amor pelo clube jamais poderá justificar o racismo, a homofobia, a misoginia, as agressões verbais e físicas, ou seja, qualquer modalidade de violência. Para os irremediavelmente doentes da alma, talvez os locais mais apropriados sejam o hospital psiquiátrico ou o presídio.

Autor:

Luiz Henrique Borges

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