15.6 C
São Paulo
quarta-feira, 24 de julho de 2024

A feira

Rita sonhara com a feira por todo o dia. Se imaginara correndo entre as tendas e brincando com as luzes coloridas que enchiam o lugar. Sabia que não lhe comprariam nada, mas, ainda assim, mais para não perder o gosto da alegria, se imaginava ganhando uma boneca de R$10,00. Isso era o céu para ela…ter uma boneca toda sua e sem ter que esperar por um dia festivo para recebê-la. Não seria como no aniversário. Ao contrário, seria algo completamente inesperado e sincero como o primeiro “eu te amo” que dizem dois enamorados.

A menina sentava-se em frente ao relógio de parede e via as horas que não passavam. Sabia que a feira começaria só às oito horas da noite, mas começaria cedo a se arrumar. Sabia que demorava mais do que os outros e a sua ida poderia ser comprometida pela demora. Ai…e olhava: uma da tarde; uma e cinco; uma e dez; uma e quinze…. Parecia que o tempo estava contra ela.

-Ah!- resmungava a menina desgostando de sua pequenez, que fazia tudo parecer grande e pesado.

Inventava, entrementes, brincadeiras tão tolas e mentirosas que nem ela acreditava no que fazia. Andava de um lado a outro sem rumo. Falava ocasionalmente ao irmão, que sempre lhe respondia com secura, pois era ela a mais nova entre eles.

Por inúteis momentos, ela vagou de um canto a outro, a esmo, como a andarilha que era. Aguardava o porvir, mas não se diria dele esperançosa… Sonhava com o melhor, é verdade. Contudo, não se afeiçoava do prazer. Antes, era refém dele, pois a ida à feira seria precisamente o que a salvaria de si e das dores de ser criança.

Então, depois de horas de martírio e de ressignificar-se inteira, a mãe chegou do trabalho e ordenou severa como sempre:

-Arrumem-se para ir à feira. Vou fazer a janta.-

Rita foi às nuvens, mas já estava pronta há muito tempo. Digo pronta para além da roupa limpa que vestia. Estava pronta de alma e coração, como uma noiva que parte para o altar.

A mãe terminou a janta e Rita se serviu de um prato farto, pois somente agora via que tinha fome e percebia que o desgaste de esperar sonhando a tarde inteira lhe havia consumido quase toda a energia. Pôs-se a comer. Comia, comia, mas a mente ia longe…estava lá: nas luzes coloridas da feira; nos cheiros exóticos de pequi, milho, pasteis e carne assada que ali se serviriam e, malgrado ela não os fosse comer, se deliciaria vendo o prazer dos que comiam.

Então…o prazer se rompeu à guisa de cristal que cai e se parte no chão. A mãe batera com a mão na mesa furiosa sem que Rita lhe entendesse os motivos:

-Até pra comer é lerda!- disse a mulher franzindo o cenho.

Rita percebia o que a frase queria dizer e era, pois, imperativo escolher: se demorava a comer, não iria à feira …

Resignada, então, já não como noiva indo ao altar, mas como rainha rumo ao cadafalso, a menina pegou o prato, levou-o até a lixeira e jogou fora o que não comera. Lavou o prato e partiu rumo à feira.

Chegando lá, não gostou do cheiro do lugar. As luzes brilhantes lhe deram dor de cabeça e a visão das gentes comendo e se fartando com delícias que lhe eram negadas pela vontade de outros muito maiores do que ela própria lhe fez doer, com uma dor de inveja, o coração. Já não tinha prazer nenhum em ir à feira.

Autoria:

Ariel Von Ocker é escritora, psicanalista, poliglota e acadêmica de Letras e História. Também já trabalhou no teatro como dramaturga e atriz. Com catorze anos escreveu seu primeiro romance e por anos seguiu escrevendo sem publicar, até que em 2021 se torna colunista no maior blog sobre psicanálise em língua portuguesa com o texto de estreia Representações Sobre o Feminino: Um Olhar Histórico. Atualmente se dedica à formação acadêmica e à divulgação da arte e do conhecimento através da iniciativa Projeto Simbiose, no qual atua no núcleo de direção em parceria com Michelle Diehl e Cristina Soares e da Revista Ikebana, onde atua como editora-chefe.
Também é autora do livro Canções da Tarde, disponível para compra através do link: https://www.amazon.com.br/dp/B09NTYWQ6Z.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Leia mais

Patrocínio