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sexta-feira, 19 de julho de 2024

A desobediência civil no filme “O grande desafio”: das telas do cinema para o enredo do cotidiano brasileiro

O real sentido funcional das leis é a justiça? Leigos diriam, instantaneamente, que sim; mas, se houver reflexão, logo será notado que as leis são a normatização da moral consensual. Então, pode-se concluir que esta influencia o conteúdo e a aplicabilidade das leis, afirmativa esta, subsidiada por Miguel Reale[1].

“Desde cedo a mãe da gente fala assim: ‘filho, por você ser preto, você tem que ser duas vezes melhor.’ Aí passado alguns anos eu pensei: Como fazer duas vezes melhor, se você tá pelo menos cem vezes atrasado pela escravidão, pela história, pelo preconceito […]?[2]”. Nesse fragmento, de interpretação do grupo Racionais, é possível notar que o artista encontrou, na música, a superação e um modo peculiar de manifestação contra o abismo social existente em nossa sociedade, cuja cor tem como herança a escravidão. Em “O Grande Desafio[3]”, os alunos do Wiley College buscaram na intelectualidade, na dialética, o viés para combater o preconceito racial ou, como o próprio filme retrata, o caminho da “desobediência civil”.

No decorrer da obra, o óbvio chama a atenção. As feridas ainda abertas, deixadas pela cultura escravocrata e pela aristocracia, refletem, no presente, as segregações raciais que eram legítimas no passado. Porém, esse apartheid não é mais legitimado pela legislação, embora o seja pela moral étnica branca (os não negros). Esse filme retrata como a legitimação da moral pode ser cruel, assim como foi no holocausto.

O conceito de desobediência civil constituiu-se como um dos mais utilizados e citados, em debates e discursos, para a interpretação e forma de justificar uma gama de ações e posturas, no âmbito jurídico-político. A partir dos anos 60, do século XX, por conta das agitações políticas e dos conflitos bélicos, a questão da desobediência civil passou a ocupar lugar especial no âmbito da teoria política e jurídica, principalmente, na defesa de direitos civis, frente ao totalitarismo e administração díspar dos mecanismos do Estado. Assim, importantes teóricos contemporâneos posicionaram-se a esse respeito, entre os quais Bobbio[4], Arendt[5], Dworkin[6] e Rawls[7].

Os alunos da Wiley College têm plena consciência de que os brancos (não negros) de hoje não têm culpa da escravidão do passado, mas os negros ainda carregam cicatrizes deixadas por séculos de história, decorrente de uma ética distorcida. De outro modo, a contemporaneidade não negra continua a desfrutar dos “privilégios” que o escravagismo lhe pôde render. Assim, a história passada no filme mostra o quanto é perigosa a junção da moral e da legislação, demostrando que um Estado Democrático de Direito, só assim o será, se todos, independente de cor, classe social ou qualquer outro motivo torpe, tiverem acesso aos bens sociais para que tenham uma vida digna.

A contribuição e o legado de Rawls fazem-se sentir de muitos modos em diversas áreas do conhecimento, é a justificação moral da desobediência civil a partir de uma Teoria de Justiça.  A desobediência civil se perfaz como combate intelectual contra um sistema, injusto, desigual, opressor e, o pior de tudo, legítimo.


[1] REALE, M.; BROWN, M. Filosofia do direito, 19ª ed., São Paulo: Saraiva, 2000.

[2] RACIONAIS. A vida é um desafio. [s. l.], C2003. Disponível em: https://www.vagalume.com.br/racionais-mcs/a-vida-e-desafio.html. Acesso em: 25 dez. 2021.

[3] O GRANDE DESAFIO. Direção: Denzel Washington. Elenco: John Heard, Forest Whitaker, Denzel Washington, Kimberly Elise, Jurnee Smollett, Nate Parker, Denzel Whitaker, Jermaine Wilians, Gina Ravera, Devyn A. Tyler; Estados Unidos-USA, 2007. Produtora: California, 2007. Gênero: Drama, Duração 126 mim.

[4] BOBBIO, N. Estado, governo e sociedade. Para uma teoria geral da política. São Paulo: Editora paz e terra, 2005.

[5] ARENDT, H. A Condição Humana. 10º ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 2000.

[6] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio, São Paulo: Martins Fontes, 2007.

[7] RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. (trad. Almiro Pisetta, Lenita Esteves). São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Autora:

Alexandra Gomes dos Santos Matos, advogada, Mestra, Bacharela em Direito e Graduada em Letras Vernáculas. Teve dissertação de mestrado aprovada, com Distinção e Louvor, pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). É professora efetiva de Língua Portuguesa, de Literatura Brasileira e de Direito, na condição de Servidora Pública da Secretaria de Educação do Estado da Bahia, bem como de docente do Colégio Santo Antônio de Jesus, além de ser membra do Grupo de Pesquisa Múltiplas Linguagens da UNEB. É especialista em Estudos Linguísticos e Literários pela Universidade Federal da Bahia, em Direito Educacional, além de Educação e Direitos Humanos pela Faculdade Futura, assim como é pós graduanda em Advocacia Cível pela Escola Superior de Advocacia Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil. Já atuou como Parecerista em Revista de Direito da Universidade Federal de Ouro Preto, foi Diretora Executiva e Coordenadora do Curso de Letras da Faculdade Zacarias de Góes, dentre outras atividades relevantes em Direito Educacional. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2445659610515416

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