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sexta-feira, 2 de agosto de 2024

O Estrangeiro

Ariel Von Ocker

A W.

Por muitos dias, mirei o estrangeiro: seu caminhar silencioso pelas ruas ao cair da noite após o dia trabalhado, os cabelos curtos cortados rente à cabeça, a cor latina de sua pele e o acento marcante de sua voz. Ele era um mistério: um recluso lembrete de que, para além das fronteiras do país, haviam vidas intrinsecamente ligadas entre si que cresciam e floresciam sem que eu nem mesmo concebesse o contorno de seus rostos.

O homem era apenas mais um entre muitos a princípio, pois eu não supus, antes de ouvir sua voz, que seus olhos poderiam ter detido sua mirada nas antiquíssimos bosques de sua terra e seus pés poderiam ter caminhado sobre as dormentes vielas da cidade esquecida. Ele era a alteridade, o encanto e uma beleza serenamente condensada nos olhos agudos que eventualmente me viam de revés ao passarmos pela rua.

Observei-o por semanas a fio. Sempre caminhava do mesmo modo distintamente igual aos outros. O rosto era severo e postura, encurvada como a que se vê nas crianças que perderam-se da mãe.

Por uma ventura do destino, ouvi um vendedor de frutas que lhe chamou pelo nome e descobri ser Fabián. Naquele dia, anotei em um papel que levava comigo seu nome. Passei a olhá-lo diferente. Lentamente, o Isso se fazia Ele…sabendo seu nome, não o via mais como Outro, mas senti sua existência e partilhei por um gozo previvido os dramas miraculosos que tornaram possível que eu o encontrasse fortuitamente partilhando comigo o rumo para o trabalho.

Cogitei em um silencioso mistério se ele teria família…teria filhos? Teria esposa? Será que ainda eram vivos seus pais? E…como teria sido sua vida em seu berço, antes de, involuntariamente, ser um eterno Outro para todos ao seu redor? Ah…essas foram fábulas de minha madrugada.

No dia seguinte, tomei coragem e ousei falar-lhe. Discretamente, esperei pela hora em que ele passava pela rua sempre no mesmo rumo ignorado. Quando vi sua silhueta magra e de olhar perdido, comecei a caminhar a alguns passos dele. Ele saudou o velho vendedor de frutas com um “olá” carregado de uma inconfundível prosódia hispânica e seguiu caminhando. Me aproximei e perguntei com voz tímida:

-Você não é daqui. Não?

-No.-  O estrangeiro respondeu.

-De onde então?-

-Venezuela.-

-Pues sea muy bienvenido.-

-Gracias.-Ele disse e seguiu andando tão quieto e decidido como antes.

Me quedei pensativo enquanto o via seguir sua rota…Pouco sabia sobre a Venezuela, mas esse pouco somado à imagem corroída daquele homem que não devia ter mais do que vinte anos foi suficiente para que eu entendesse a dor de sua experiência. Me arrependi de lembrar-lhe de sua eterna alteridade e culpei-me pela tola curiosidade.

Quis me desculpar no dia seguinte. Porém, depois desse dia, não voltei a ver Fabián. Supus que ele poderia ter mudado de emprego e já não precisasse andar por ali para ir trabalhar. Também cogitei se não teria ele voltado a seu país. Nesse último caso, provavelmente nunca mais eu o veria.

Passaram-se alguns meses e não voltei a vê-lo. Porém jamais me esquecerei do eco perdido das palavras do estrangeiro. Ele era triste; severamente triste. E eu não pude deixar de partilhar de sua tristeza, pois eu também era um estrangeiro em minha terra.

Autor:

Gabriel Montes

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