“Na época atual, o ritmo incessante das transformações gera angústias e incertezas e dá lugar a uma nova lógica, pautada pelo individualismo e pelo consumo”, afirmou o proeminente sociólogo Zygmunt Bauman em sua obra “Modernidade Líquida”1, e é a partir desse excerto que ensejamos iniciar nossa pequena digressão. Percebemos, pois, que a pauta do consumo não se dá apenas pelos bens palpáveis, mas também pelo consumo exacerbado de mídias sociais, que nos leva a crer na fática realidade de que o individualismo pode muito bem revelar uma faceta narcisista, na qual o indivíduo sente imperiosa necessidade de consumir mídias sociais assim como também espera e anseia ser consumido por elas.
Instala-se, portanto, uma espécie de arquétipo egológico onde o que interessa é quantos seguidores eu tenho e quantos eu consigo angariar, de modo que eu possa ser consumido pela sociedade, ao mesmo tempo em que não me importo com o pensamento coletivo ou social; existe apenas um “eu” voltado para mim. E para que isso aconteça de modo mais frenético atendendo aos anseios do indivíduo, ele se vale de todas as ferramentas disponíveis, em especial, as mídias sociais, onde fervilham egologias e se difundem falsos ícones. E se por um lado, toda essa projeção virtual possibilite ascensão de pessoas antes ilustres desconhecidos, também propicia surgimento de falsos deuses e profetas que para perdurarem no tempo valem-se do uso indiscriminado de notícias falsas e veiculações desconectadas da realidade.
Atentos a toda essa movimentação estão as próprias mídias sociais com seus estatutos, códigos de conduta e tribunais de exceção que agem não se sabe bem a quem e servindo a quais interesses. Uma atitude recente do craque de futebol, o português Cristiano Ronaldo, que durante uma entrevista afastou duas garrafas do refrigerante “Coca Cola”, causou enorme estardalhaço e péssima repercussão para a empresa2. Por óbvio que o incidente pode ter reverberado negativamente para a imagem da empresa, mas também se sabe que ela possui mecanismos para driblar eventuais danos, valendo lembrar que nada no mundo de hoje é eterno, ou se é, dura apenas o suficiente até o surgimento de outro evento que lhe furte o interesse e a atenção públicas.
Este evento traduz exatamente o que se quer dizer com uma sociedade líquida, onde reinam o individualismo e o consumo, andando de braços dados e acolhidos pelas mídias sociais e também pelos órgãos de imprensa que veiculam informações pela rede mundial de computadores. Alia-se a tudo isso os chamados “Tribunais Instantâneos”, que nada mais são que resultado da livre circulação de ideias e opiniões pela rede que, mediante um simples clique destoante causa uma espécie de “efeito manada”, seja contra, seja a favor da ideia ou opinião, sepultando de imediato e impiedosamente, tanto os famosos como também os ilustres desconhecidos que galgaram algum reconhecimento3.
Esse verdadeiro “caldo virtual” onde regras nascem e morrem diariamente e onde apenas as mídias possuem significativo grau de influência, tudo é verdadeiro ou falso, fato ou mentira num piscar de olhos e onde o risco de destruição da identidade social vai muito mais além do que se imagina. Basta que se preste atenção ao embate ferrenho entre defensores e críticos do uso de Cloroquina e Hidroxicloroquina como tratamento precoce de combate ao vírus da COVID-19; por mais que se esforcem, tanto de um lado quanto do outro, não existe constatação cientificamente comprovada a favor de qualquer um dos sentidos, restando comprovado sim que trata-se muito mais de um embate político que científico.
Aliás, o advento da pandemia trouxe consigo uma enorme discussão sobre o papel da ciência frente aos meios de comunicação, pois o que se viu até o momento foi uma demonstração de ineficiência e apologias unilaterais que serviam para deixar a população ainda mais desorientada e a mercê da própria sorte …, ou azar.
Outra demonstração inequívoca de que travasse uma verdadeira guerra midiática dentro desta sociedade líquida reside na visível comprovação de que cada um de nós quer tornar se um canal de informação e formação de opiniões, transmitindo notícias e impressões que nem sempre se tem certeza da origem e quiçá da veracidade. Um pequeno exemplo é o caso alardeado de um cão da raça pitbull, de nome Thor, que teria matado dois criminosos que invadiram a residência de sua proprietária e depois tentaram estuprá-la; a notícia espalhou-se como um rastilho de pólvora e provocou verdadeira comoção, principalmente porque a notícia dava conta de que a polícia pretendia sacrificar o animal; mas, por fim, viu-se que era apenas um boato4.
Ao que parece existe uma pequena indústria que se alimenta dessas notícias falsas, seja para criar um alarde ou uma comoção, seja apenas para angariar prestígio nas redes sociais e depois vendê-la como um produto que muito interessa para as grandes marcas institucionais/empresariais. E mais importante ainda é o fato de que mesmo após a constatação da falsidade contida nas notícias veiculadas poucos ou quase nenhum órgão respeitável vem a público para desmenti-la como se a eles também interessasse esse caos midiático.
Para movimentar ainda mais essa indústria, temos a seu favor os chamados “Reality Shows” cuja finalidade nada mais é que criar celebridades instantâneas que servirão de vetores a difundir tudo que proporcione lucro e resultado. Relembrando o célebre estudo chamado “Universo 25”5, vemos que a decrepitude de uma sociedade revela-se a partir de estágios em que a empatia coletiva é substituído de forma atroz por uma outra forma empatia alimentada pela influência que alguns poucos conseguem exercer sobre a maioria criando uma espécie de identidade entre criador e criatura, onde o personagem guindado ao patamar de celebridade precisa adotar posturas que sejam seguidas e copiadas sem muito se preocupar com arquétipos socialmente ou culturalmente aceitos como inseridos em uma moralidade predisposta.
O que interessa é a identificação entre criador/celebridade e criatura/seguidores, sendo que o resto é apenas cenário oportuno para a disseminação de comportamentos narcisistas e consumistas atendendo, assim, às expectativas almejadas pelos dirigentes/diretores impulsionando mais consumismo e acirrando o narcisismo que sedimenta-se em redes sociais com selfies, histories, posts e tudo mais que sirva de exemplo sem importar muito com o resultado social desse exemplo.
Esse é, portanto, a frente de batalha dessa guerra midiática travada não em trincheiras fétidas e úmidas, mas em ambientes cibernéticos e digitais onde aquele que detém o controle dos algoritmos detém a vontade de criadores e criaturas, sempre estimulando que esta sociedade liquefeita caminhe em direção à sua própria estagnação; ressalte-se que a palavra “estagnação” não significa aniquilação; o que ela deixa transparecer é um aspecto mutacional que ainda não pode ser definido, mas apenas desvendado passo a passo.
Existe apenas um risco mal calculado que se revela através de situações em que a celebridade instantânea adota uma postura desviante ou de confronto pela qual sua opinião destoante daquela que se espera dela vá de encontro ao anseio de seus seguidores que revoltam-se adotando uma postura não apenas crítica, porém muito mais feroz com o uso de mecanismos de agressão social e repúdio – os chamados haters – que podem atirar a tal celebridade em um limbo social, ou até mesmo ao mais profundo esquecimento. E isso também é interessante para os controladores que veem nessa situação uma nova perspectiva de estabelecer novos caminhos para a hegemonia do narcisismo e do consumismo. Percebam que o interesse aqui não reside na chamada morte social ou midiática da celebridade, mas sim na possibilidade de seu renascimento proporcionando angariar ainda mais seguidores que podem até chegar ao nível de cultuadores. E quem somos nós? Somos os entrincheirados esperando para tomar partido sem se importar com o lado, desde que esse seja o vitorioso.
1 https://guiadoestudante.abril.com.br/estudo/a-filosofia-de-zygmunt-bauman-o-pensador-da-modernidade-liquida/
2 https://www.uol.com.br/esporte/colunas/lei-em-campo/2021/06/15/cristiano-ronaldo-pode-ser-punido-por-escondercoca-cola-entenda-por-que.htm
3 https://istoe.com.br/os-perigos-das-redes-sociais/
4 https://www.boatos.org/brasil/pitbull-evita-estupro-mata-dois.html
5 https://www.megacurioso.com.br/ciencia/115982-utopia-dos-ratos-experimento-previu-a-extincao-dahumanidade-.ht
Autor:
Antonio de Jesus Trovão
Infelizmente está cada vez mais difícil saber com quem está a verdade, são tantas notícias falsas, tantas inverdades e versões…