A tragédia de Charlie Kirk é, ironicamente, o desfecho trágico de um ciclo forjado na retórica bélica que o mesmo tanto apregoou. Não se comemora a morte de ninguém — que fique claro —, pois o ato de lamentar, ainda que vacilante, em meio a selvas de brutalidade e ressentimento é o que faz de nós humanos de verdade. Porém, há uma beleza macabra e um requinte de ironia escancarado quando o arquiteto do discurso do “ódio virtuoso”, entusiasta do direito à morte em nome do armamento, sucumbe pela mesma lógica que tanto defendeu. E, aqui, o sarcasmo não é direcionado ao cadáver, mas ao sistema de implicações que envolvem, tão eficiente em ceifar vidas quanto em angariar seguidores: tragédia anunciada, coreografada por mãos que empunham armas e propagam rancor.
Charlie Kirk, claro, foi sempre explícito: segundo ele, “algumas mortes são um preço pequeno a se pagar para garantir o direito às armas”. O conceito é simples — quase elegante na brutalidade —, pois coloca a vida como moeda de troca, estatística negociável, desde que seu sangue e de seu grupo estejam protegidos do sacrifício maior. Uma coreografia biopolítica na acepção foucaultiana: vidas administradas e descartadas pelo cálculo do poder. “Deixe morrer, se preciso para.” Eis a racionalidade fria do Estado e de suas proxenetas ideológicas, onde a vida de alguns vale mais, e é precisamente essa a essência que Achille Mbembe nomeia necropolítica: administrar a morte dos outros como projeto de governo.
Se no laboratório americano essa lógica se expressa através de mártires gravados e atiradores anônimos, no Brasil ela ganha sotaque e vira espetáculo grotesco. Nada mais foucaultiano que um Estado e agentes públicos instrumentalizando o medo e a insegurança, à la Bolsonaro, para justificar sua guerra particular contra “os outros” — seja nas favelas, seja nas universidades, seja nos lares de mulheres, negros, LGBTQIA+ ou “petistas”. O presidente que triunfou sobre o voto do ódio é o mesmo que, há anos, ensina seus sectários a transformar adversários políticos em inimigos passíveis de eliminação. “Vamos metralhar a petralhada”, disse em um palanque, sempre o opositor a carne combinada. São filhos e gestos que autorizam a morte, promovendo o ressentimento como método de governo.
Atenta-se ao escândalo da empatia seletiva: todo desespero à direita diante do assassinato de Kirk, enquanto se riam, calavam ou tripudiavam o corpo de Marielle Franco — mulher negra, favelada, lésbica e dissidente, que só os vivos verdadeiramente ousam defensora. No aniversário de Marcelo Arruda, guarda petista municipal, também foi autorizado o tiro: não por acaso, mas pelo roteiro necropolítico de um “cidadão de bem” bolsonarista que transformou festa em execução, política em pólvora. Até que não se observe o apartheid emocional que é marca registrada de regimes fundados na política de extermínio.
Portanto, não há deboche. Mas há, sim, uma amarga lembrança de que lógicas biopolíticas, como sintetizou Foucault, apresenta sujeitos vulneráveis, expostos ao arbitragem dos que detêm o monopólio da morte ou do perdão. E há, acima de tudo, a consciência necropolítica de que quem planta morte não colhe outra coisa. Não há tragédia pessoal que dilua o horror de uma sociedade que só se regular no espelho quando é ela própria que sangra. Enquanto a vida for apenas uma ficha em roleta russa partidária, a hipocrisia seguirá custando caro — e sua conta não para de chegar.