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quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Além do arco-íris: Pride, os movimentos sociais LGBTQIAPN+ e outras conversas

Em 28 de junho de 1969, uma batida policial ocorreu no Stonewall Inn. Esse barzinho está ainda hoje localizado no bairro de Greenwich Village, em Nova York (EUA) e se tornou um marco importante na história do movimento LGBTQIAPN+ devido aos eventos ocorridos em junho de 1969, conhecidos como a Rebelião de Stonewall ou Motim de Stonewall.

LGBTQIAPN+ é uma sigla que tem passado por atualizações constantes ao longo dos anos, e seu uso vincula-se muito ao contexto o qual foi idealizado. No Brasil, essa atualização de GLS (muito utilizada na década de 90) para a sigla em uso ocorreu em 2019 através da Associação Brasileira LGBT e significa Lésbica, Gay, Bissexual, Transgênero, Queer, Intersexual, Agênero (ou Assexual), Pansexual, Não-binárie e o ‘+’ significa um universo de outros termos para pessoas que se identificam de outras formas, como Crossdresser, drag queen/king e outros.

Voltando ao Stonewall Inn em 69, as pessoas LGBTQIAPN+ enfrentavam uma série de leis discriminatórias nos Estados Unidos, incluindo a criminalização da homossexualidade e a repressão policial constante. Os bares frequentados por essa comunidade também enfrentavam pressão da polícia, que realizava batidas regulares para prender e intimidar os frequentadores

Diferentemente das vezes anteriores, uma batida policial nessa data foi diferente. Desta vez, houve resistência. A multidão reagiu, com manifestantes dentro e fora do bar, homens, mulheres, jovens e drag queens, se unindo contra a opressão. Durante vários dias, confrontos violentos entre a polícia e a comunidade ocorreram nas ruas próximas ao Stonewall Inn.

Os eventos de Stonewall marcaram um ponto de virada na luta pelos direitos civis das pessoas da sigla. A rebelião inspirou a formação de grupos ativistas e organizações, incluindo a Gay Liberation Front (Frente de Liberação Gay) e a Gay Activists Alliance (Aliança de Ativistas Gays). As manifestações e protestos subsequentes, bem como a crescente conscientização e solidariedade, levaram a avanços significativos na defesa de seus direitos nos anos seguintes.

Em 1970, foi realizada a primeira Parada do Orgulho LGBT, em Nova York, para marcar o primeiro aniversário dos eventos de Stonewall. Essa parada se tornou um modelo para outras celebrações do Orgulho LGBT em todo o mundo, que são realizadas anualmente durante o mês de junho.

O legado de Stonewall é lembrado como um momento de resistência, coragem e mobilização da comunidade. Ele serviu como catalisador para o movimento pelos direitos LGBTQIAPN+ e para a conscientização sobre as questões que afetam essa comunidade em todo o mundo.

Em 1997, a cidade de São Paulo sediou a primeira Parada do Orgulho Gay do Brasil, intitulada “Somos muitos, estamos em várias profissões” e contou com a participação de cerca de 2.000 pessoas. Em 2023 ocorreu a 27ª edição, agora com o nome ‘Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo’ e com o tema ‘Políticas Sociais para LGBT+: Queremos por inteiro, não pela metade” e estimou-se a participação de mais de 4 milhões de pessoas, um número histórico e que já chegou a entrar para o livro dos recordes mundiais, o Guiness Book, em 2006.

Ao longo dos anos, os movimentos organizados em prol da causa ganharam forma e conquistaram algumas vitórias, como políticas públicas voltadas à saúde, combate e prevenção do HIV/AIDS, combate à violência homofóbica, mudança na classificação da homossexualidade nos órgãos governamentais que viam a homossexualidade como ‘desvio ou transtorno sexual’, enfim. No entanto, ainda há muito a ser feito.

Algumas questões alarmantes. No começo deste ano de 2023, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) publicou um relatório que aponta que este é o quarto ano seguido do Brasil no topo dos países que mais mata pessoas trans no mundo. Segundo a Organização não Governamental Observatório de Mortes e Violências LGBTI+, em 2022 no Brasil, a cada 32 horas uma pessoa da sigla era assassinada no país, representando ser essa uma nação que está no topo no que diz respeito à LGBT fobia e transfobia.

Há ainda um alto número de pessoas que tiram a própria vida por serem LGBT no Brasil e no mundo. Segundo Oliveira & Vedana (2020): “Estudo realizado nos Estados Unidos identificou que 8% dos homens e 13% das mulheres heterossexuais tinham ideação suicida, enquanto entre homens e mulheres da população LGBT essa taxa foi de 36% e 42% respectivamente. Ademais, estima-se que 20% da população LGBT adulta já tentou suicídio ao longo da vida” (OLIVEIRA; VEDANA, 2020).

PRIDE: o ouro cor de rosa

Entramos então no mês de Junho. Um mês em que é muito falado sobre orgulho e as marcas se apropriam dessa estética para faturar em cima dessa causa. Pride é uma palavra em inglês que significa Orgulho e é utilizada pelo movimento como símbolo de resistência.

A apropriação conceitual do movimento Pride pelas marcas é um fenômeno alarmante e digno de crítica. O Pride, originalmente concebido como uma luta pelos direitos e pela visibilidade da comunidade LGBTQIAPN+, tornou-se uma oportunidade conveniente para as empresas capitalizarem e promoverem suas próprias agendas.

Enquanto algumas marcas podem genuinamente apoiar a comunidade e direcionar seus esforços para promover a igualdade e a inclusão, muitas outras parecem estar apenas interessadas em lucrar com a imagem do movimento Pride. Elas estampam suas logomarcas com as cores do arco-íris, lançam coleções temáticas e promovem campanhas publicitárias voltadas para o público LGBTQIAPN+ durante o mês de junho.

No entanto, é importante questionar as intenções por trás dessas ações. Será que essas marcas estão comprometidas em fazer uma diferença real na vida das pessoas LGBTQIAPN+ além do mês do Pride? Ou estão simplesmente utilizando a causa como um chamariz para vender mais produtos? Infelizmente, muitas vezes é o segundo caso.

Outro problema é a chamada ‘pinkwashing’, que ocorre quando empresas se envolvem em práticas de marketing que sugerem apoio à causa LGBTQIAPN+, enquanto nos bastidores não adotam políticas inclusivas ou contribuem para causas relevantes. Essa estratégia manipuladora busca melhorar a imagem da marca sem um compromisso real com a comunidade LGBTQ+.

Assim, reflito com Berenice Bento (2015) sobre essas questões e tantas outras. No ensaio “Pinkwashing à brasileira: do racismo cordial à LGBTTTfobia cordial”, a autora dirá que sofremos atualmente de algo tipo um “racismo cordial” e de uma “LGBTTfobia cordial”, na medida em que não há uma segregação legal e o “outro”, os seres transviados que constituem a nossa Nação (a população negra e os LGBTTTs)” (BENTO, 2015). Ela ainda dirá, parafraseando Chico Buarque de Holanda, que a noção de democracia real entre nós nunca passou de uma fina camada de verniz no belo e ostentoso edifício da República. É uma crítica realmente, e devemos manter essa chama acessa.

Considerações finais: Orgulho pra quê?

Muitas são as temáticas que podemos abordar ao falar da comunidade LGBTQIAPN+, e um pouco delas pude trazer aqui: o histórico dos movimentos sociais que culminaram na parada gay, o contexto de uso da sigla (em breves palavras, sobre a mudança que a sigla vem sofrendo ao longo do anos), os avanços e desafios encontrados em um contexto nacional e também as problemáticas que envolve o uso do ‘PRIDE’ pelas marcas ao se apropriar de um conceito para uso comercial com fins apenas lucrativos. Meu sentimento, enquanto membro da comunidade LGBTQIAPN+, é que sim, tivemos avanços consideráveis ao longo dos anos (alguns já citados aqui), como a ocupação de espaços políticos por pessoas da sigla, políticas públicas de inclusão e pertencimento, debates ocorrendo no ambiente acadêmico, midiático e social, entre tantas outras ações e frentes da sociedade civil e terceiro setor. Isso é fantástico!

Ao mesmo tempo, precisamos continuar trazendo luz às questões urgentes da pauta, como o preconceito e discriminação sofrida no país, seja aquele explícito, que resulta em violências e mortes, como aquele não explícito, que está em nossa família, nas igrejas, no ambiente de trabalho, nas rodas entre colegas, enfim. No mês e Junho – bem como nos demais meses – precisamos continuar falando sobre esses temas e trazer visibilidade a assuntos tão marginalizados muitas vezes por discursos opressores carregados de ódio, opressão e discriminação. Precisamos fazer valer nossa voz detentora de direitos humanos e civis. Não há nada de errado em utilizar roupas coloridas neste mês ou ir a shows temáticos em trio elétrico nas paradas, mas ser um LGBTQIAPN+ é muito mais que isso.

Ser um LGBTQIAPN+ é ser político, e trazer em seu corpo e sua história, seu protesto. É ir as ruas demonstrar que não é errado amar, errado é não amar. É usar as roupas coloridas e outras modas lançadas no mês de junho não apenas pela estética, mas pelo signo por detrás, o significado. E o significado é esse: luta pela sobrevivência, resistência diante de um sistema opressor (muitas vezes o ‘sistema’ é a própria família), e continuar resistindo. Discordo da frase de autoria de Frejar e Cazuza, na música malandragem tão conhecida na voz de Cássia Eller, que diz “Quem sabe a vida é não sonhar”. Devemos sim sonhar com um mundo melhor, livre de tanta opressão e tanto sangue derramado apenas por ser quem é. Mais que sonho, devemos viver. A vida é linda… e vale muito a pena ser vivida.

REFERÊNCIAS

BENTO, BERENICE. “Pinkwashing à brasileira”: do racismo cordial à LGBTTTfobia cordial. Revista CULT, 2015. Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/pinkwashing-brasileira-do-racismo-cordial-lgbtttfobia-cordial/> Acessado em: 25/06/2023.

Brasil asesina a una persona LGBTI+ cada 32 horas en 2022. Observatório de Mortes e Violências LGBTI+ no Brasil, 2023. Disponível em: <https://observatoriomorteseviolenciaslgbtibrasil.org/dossie/muertes-lgbt-2022/> Acessado em: 25/06/2023.

OLIVEIRA, ELIAS TEIXEIRA DE; VEDANA, KELLY GRAZIANI GIACCHERO. Suicídio e depressão na população LGBT: postagens publicadas em blogs pessoais. SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.), Ribeirão Preto, v. 16, n. 4, p. 39-48, dez.  2020. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-69762020000400005&lng=pt&nrm=iso>. Acessado em: 25/06/2023.

Autor:

Josué Santos. Doutorando em Educação pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.

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