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quarta-feira, 28 de agosto de 2024

 Juca

Ninguém sabe exatamente de onde ele veio, nem qual o seu nome verdadeiro. Desde o dia em que pôs os pés na Santa Helena, que o “batizaram” de Juca. E até isso não tinha um motivo claro. Simplesmente olharam para o rapaz e o chamaram por este nome. Ele adotou o nome, não porque tivesse gostado, mas mais porque achou mais simples do que dizer seu nome de batismo… ah, é bom esclarecer que ele só se tornou católico apostólico romano algum tempo depois que já morava na fazenda… até então, seu credo era outro dos mistérios que o envolviam…quando chegou, não devia ter mais de uns quinze, dezesseis anos. Rapazola forte, compleição atlética, logo caiu nas graças de Zacarias, que praticamente adotou o rapaz por algum tempo. Sim, dividiram seu pão com Juca, até que ele conseguiu se aprumar na vida, como se costuma dizer. E ele sempre foi agradecido ao amigo e sua família, que o tratava como um igual. O espírito de camaradagem que existia ali era uma coisa assim tão especial que parecia que sempre havia morado no seio daquela família. Tanto que, no dia em que se mudou para seu ranchinho, conseguido a duras penas, depois de horas de trabalho após a lida diária, sentiu como se estivesse deixando sua família por uma segunda vez… sim, dona Rosário era uma mãezona muito afetuosa, sempre cuidou do rapaz com os mesmos cuidados que dispensava aos seus filhos…

Nos primeiros dias morando sozinho Juca sentia-se oprimido… saudades tanto da sua casa lá nas terras distantes de onde viera quanto da família adotiva que por ele tanto fizera. Muitas vezes sentia o ímpeto de sair por aquela porta e bater na casa de seu amigo, para participar da conversa de família, conhecer as fofocas mais recentes (ultimamente estava muito fofoqueiro… e isso não era muito bom), partilhar da conversa com os membros da família… mas conseguia se controlar. Quando a saudade apertava por demais o seu peito, pegava a violinha que havia comprado na feira mensal do arraial e arrancava do instrumento lindas canções, algumas de seu rincão natal, outras que havia aprendido na labuta do dia a dia … e assim ia tocando a vida.

Por ser um excelente cavaleiro e por gostar do trato com os animais, Juca acabou sendo escalado para trabalhar com o gado no campo. Bom na corrida e no laço, era um dos melhores vaqueiros da fazenda. Necessário dizer que a fazenda tinha tanto uma parte de lavoura quanto outra de criação de gado. E mesmo a criação de gado também era dividida em gado leiteiro e gado de corte. Juca trabalhava nos dois segmentos, afinal, gado era somente gado… quando era dia de rodeio, ninguém conseguia superá-lo nas provas. E quando puxava de sua viola, não tinha quem não ficasse maravilhado com sua voz e com sua destreza para tirar as notas de seu instrumento. Sim, Juca era o melhor violeiro da região. Sua fama foi crescendo com o tempo, e chegou uma hora em que era convidado para tocar em todos os fandangos da região. As moças suspiravam pelo rapaz. Afinal, não tinha como não se destacar da multidão… em um local onde a maioria das pessoas era morena, com os cabelos negros, sua pele alva, cheia de sardas e seu cabelo vermelho não tinham como não ser notados. E seu rosto tinha uma conformação bonita… sim, as moças suspiravam por ele, desejando serem escolhidas para namorá-lo. Mas seu coração já tinha uma dona. O diabo é que a morena não lhe dava a menor pelota… à vezes parecia mesmo que ele era invisível, pois a moça simplesmente não o notava. E olha que, quando a via por perto, costumava cantar as canções mais melosas, abrindo seu coração e declarando seu amor pela pequena… todo mundo já havia percebido, menos ela…

Devagar foi ajeitando seu rancho. Como seu Nardi deixou-o escolher onde queria levantar sua tapera, resolveu morar debaixo de um lindo pé de ipê. Os galhos da árvore deixavam as flores cair por sobre o telhado da casinha. E o perfume destas invadia toda a morada. A tarde, quando não estava no campo cuidando das reses, pegava sua vara de pescar e ia buscar a mistura para a janta e o almoço do dia seguinte… se considerava um bom pescador, mas não tinha como não pegar os peixes que viviam nos diques da plantação de arroz. Foi em um desses dias em que pescava que viu pela primeira vez sua amada. Aquela menina brejeira conquistou seu coração à primeira vista. Logo tentou descobrir seu nome, o que não foi difícil, pois esta era amiga de Maria, filha de Zacarias. Ficou sabendo que a moça não tinha namorado e que morava sozinha com sua mãe… e seu nome… combinava perfeitamente com ela… afinal, ela era uma graça de menina…

Começou a cortejá-la, mas o diabo é que a menina era mais escorregadia que um bagre. Dava até a impressão de que ela antipatizava com ele, afinal toda vez que tentava conversar com a moça essa o cortava e simplesmente lhe dava o fora… mas devagar, persistindo, finalmente conseguiu se aproximar da garota e tornar-se seu amigo… bem, talvez “amigo” fosse um termo um tanto exagerado, mas pelo menos conseguia travar com ela diálogos um pouco mais extensos do que “oi” ou “como vai”…  e quando sentiu-se um pouco mais seguro de suas ações, pediu a moça em namoro… a surpresa no rosto dela era genuína, não esperava realmente o pedido do rapaz… isso denotava que ela não se interessava por ele… mas tinha que tentar a sorte, não é mesmo? E foi o que ele fez… até que não se saiu tão mal… afinal, a resposta de Graça é que pensaria sobre o pedido e depois lhe responderia…

O corpo

 Todo o vilarejo estava em polvorosa. E não era para menos. Afinal, haviam encontrado um corpo sem vida perto da linha de trem. Um pouco longe da estação, quase escondido no meio das folhagens, jazia um corpo de um homem. Pálido, aparentemente sem sangue algum em seu corpo. Não havia sinais de luta, aparentemente a vítima não reagiu contra seu algoz. As pessoas ficavam em volta do cadáver, mas ninguém tinha coragem de se aproximar e ver o que realmente acontecera com ele. Finalmente chegou o delegado, acompanhado por seus dois auxiliares. Desmontaram, se aproximaram do corpo. “Seu” Duarte, o delegado, virou o corpo à procura de algum sinal de violência contra o mesmo, mas nada encontrou. O corpo não apresentava nenhum ferimento. Ele coçou a cabeça, sem entender bem o que havia ocorrido. Se pelo menos o Doutor Alberto, médico legista da região não tivesse viajado, poderia lhe dar uma mão, tentar explicar-lhe o que realmente ocorrera ali…

Nem todos os vilarejos contavam com veículos automotores, ainda. A Capital tinha poucos automóveis, e havia planos de distribui-los pelo interior, mas não havia nenhuma previsão de quando isso aconteceria. Portanto, ainda contavam com o cavalo como meio de transporte e, quando havia alguma vítima fatal como agora, contavam com uma boa e velha carroça, ou mesmo um carro de boi, para levar o corpo para o necrotério… felizmente as distâncias a percorrer nunca eram muito longas… hoje seria uma exceção… afinal, do local onde encontraram a vítima até o centro do arraial tinha uma légua, mais ou menos… e como a carroça não estava disponível no momento, Duarte pediu ao “seu” Nardi que emprestasse um carro de boi, para poder fazer o translado do corpo.

Não demorou muito e Zacarias chegou com sua parelha. Com muito cuidado acondicionaram o corpo no carro e finalmente começaram a seguir rumo ao centro do arraial. As pessoas se benziam conforme o carro ia passando, lento, com as rodas rangendo sua canção característica e a voz de Zacarias incentivando sua parelha a caminhar… “vai, Malhado… vai Brioso”… e assim foram seguindo viagem, até que depois de um bom quarto de hora finalmente chegaram ao seu destino.

Já passava do meio dia quando Maria se encontrou com seu pai. A primeira pergunta que fez foi sobre o corpo que ele havia levado para o arraial.  Zacarias se limitou a suspirar e não respondeu a pergunta da filha. Ela estava curiosa, queria saber o que ocorrera, mas nada arrancou de seu pai. Vendo que não conseguiria nenhuma informação sobre o ocorrido, e como sua hora de almoço já estava se esvaindo,  começou a falar sobre amenidades, coisas que aconteciam no seu local de trabalho. Mas notou que seu pai estava com o semblante carregado, com um ar preocupado que não condizia com o jeito bonachão deste. Afinal, ele estava sempre com um sorriso largo no rosto, sempre fazendo piadas, brincando com todo mundo… mas hoje, não… dava para perceber que alguma coisa o preocupava. Mas não adiantaria nada ela perguntar sobre o que estava acontecendo, pois aparentemente tinha a ver com o serviço que ele realizara naquela manhã. E isso a deixava mais curiosa, ainda.

Quando Maria ia se retirar para voltar ao trabalho, Zacarias fez um sinal para que ela esperasse um pouco. Foi até a cômoda de seu quarto, pegou uma corrente com um crucifixo e colocou no pescoço da moça. Ela o olhou, sem entender muito bem o que seu pai estava fazendo. Sim, eles eram religiosos, sim, acreditavam no poder que tinham os símbolos sagrados. Mas daí a usá-los no dia a dia, e ainda mais no trabalho… 

– Quando terminar o serviço, venha direto para casa.

– Hã?

– E avise sua mãe e seus irmãos…. terminaram o serviço, venham direto para casa. Nada de se desviar do caminho…

– Porque, pai?

– Porque sim. Venham direto para casa. Ah, e avisa aquela desmiolada de sua amiga para fazer o mesmo. Não é bom ficar zanzando por aí à noite. Principalmente se embrenhar no meio da mata…

– Mas ela não…

– Olha, a noite tem que ser respeitada. Depois que o sol se esconde, é hora das almas correrem pelo mundo. E a gente não deve nunca abusar…

– Buscar lenha para cozinhar é abusar?

– Ela pode fazer isso no sábado, depois que terminar o serviço… a gente só trabalha até o meio dia, então tem um bom par de horas para ir buscar lenha, é ou não é?  

– Tá bom, pai… só não estou entendendo o que…

– Não tem nada para entender, Maria. É só fazer o que estou te mandando…

– Tá, mas porque?

– Porque sim…

– É por causa do corpo que acharam, não é?

Zacarias ficou em silêncio.

– Fala, pai… é por isso?

Ele continuou calado, olhando para o nada no infinito.

– Pai…

– Filha, escute seu pai e faz o que estou te pedindo. É pro seu próprio bem…

E considerou a conversa encerrada. Vendo que não conseguiria arrancar mais nada de seu pai, Maria deu de ombros e voltou para sua quadra de arroz. Ainda tinha um bom par de horas para trabalhar. E, sim, obedeceria as ordens dele. Afinal, nunca o tinha vista tão sério como agora. E, apesar de não entender muito bem o que estava se passando, era melhor seguir aquilo que seu pai estava pedindo. Não custava nada seguir seu conselho. E, além disso, ela sentia uma aura de medo se espalhando por todo o arraial…

Autora:

Tania Miranda

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