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quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Noite na campina

Zacarias procurou organizar os turnos de vigília de forma que todos descansassem o suficiente para enfrentar a caminhada do dia seguinte. Embora não achasse necessário, conferiu a munição de suas armas e pediu que os companheiros fizessem o mesmo. Ali não parecia ser um lugar perigoso, mas vai que aparecesse alguma onça pintada querendo se banquetear com uma das vacas do “seu” Nardi… isso estava fora de questão. Os animais tinham que chegar na fazenda fortes e saudáveis. Afinal, eram vacas leiteiras que deveriam aumentar a produção da fazenda. Depois de jantarem e conferirem se tudo estava nos conforme, Zacarias assumiu o primeiro turno de guarda. Seus parceiros estenderam seu baixeiro debaixo de uma árvore frondosa e trataram de fechar os olhos.  Juca não conseguia dormir, receoso com as histórias que ouvira do local. Levantou-se várias vezes para conversar com seu companheiro, que sempre o mandava tentar dormir um pouco, pois a carga do dia seguinte seria puxada. De vez em quando olhavam para o firmamento. As estrelas brilhavam como pequenos vagalumes, como pequenas contas enfeitando o manto noturno. A lua prateada não iluminava muito, pois o terreno era bastante arborizado e as copas das árvores encobriam sua luz…. a maior preocupação dos três realmente era uma chuva, comum nessa época do ano… geralmente chegava sem avisar…

Devia ser perto da meia noite quando caíram os primeiros pingos d’agua. Mansinho, de inicio…  quase que não dava prá sentir. Então, de repente, sem nenhum aviso uma verdadeira tromba d’água desabou sobre a terra. Juca, que estava vigiando o gado, correu para acordar seus companheiros. Claro que não havia necessidade disso, pois a água que caiu por sobre os dois os despertara na hora. A preocupação momentânea na verdade era outra… os primeiro trovões começaram a ecoar bem longe, lá na serra… mas brevemente seriam audíveis onde os três estavam com o seu gado… e aí…

Zacarias tratou de juntar as cabeças de gado em um círculo e torceu para que não perdessem o controle sobre os animais. Os três homens, cada um montado em seu cavalo, se dividiram em volta do rebanho, prontos para qualquer eventualidade. Logo o gado começou a se agitar, pois os coriscos não só começaram a cair mais próximo de onde estavam, como o som dos trovões ecoavam cada vez com mais intensidade…  Não foi um trabalho fácil, mas com a ajuda de Uísque, o fiel companheiro, conseguiram manter o gado onde estavam acampados… a chuva estava diminuindo sua intensidade, os raios e trovões começaram a escassear… o gado começou a se acalmar… aparentemente, haviam vencido a batalha… iriam passar o resto da noite molhados, já que não tiveram tempo de colocar suas capas, pois a prioridade era manter o gado agrupado… bem, pelo menos haviam vencido aquela etapa. Ou assim pensavam… 

Tonhão assumiu o turno da guarda e seus companheiros foram se recostar, para descansar um pouco. Não demoraria a amanhecer e teriam que pegar o estradão em direção ao arraial. Os dois estavam começando a dormir, quando Tonhão os chamou, apavorado…

– Zacarias… Juca! Boi-Tatá!

– Está ficando doido, rapaz? O que está falando?

Juca olhou para o lado em que Tonhão apontava… e falou, apavorado….

– Ele está certo! Olha!…

Zacarias olhou também… ficou lívido!

– Não, gente… não é um boi-tatá…

– É, sim, homem… olha lá…

– Tonhão, aquilo te parece uma bola de fogo?

O dois companheiros olharam para a aparição que estava no alto do céu… quase cobria a lua, tão grande era… Girava em uma velocidade tal que faiscava mil cores, enfeitando o céu com um arco-íris multicolorido… a bola cortava o céu indo de um ponto para o outro desenhando arcos  coloridos… ora era azul, ora vermelho… e em seu rastro, o arco-íris… iluminando tudo como se fosse dia…

– Gente, isso aí é outra coisa…

– O que é, então?

– Eu tinha ouvido falar que isso tinha aparecido lá no Limoeiro… olha, não quero dar noticia ruim prá vocês, não… mas a gente vai ter trabalho a noite toda, hoje…

– Mas o que é isso, homem de Deus?

– Vocês já vão descobrir…

De repente, a bola começou a avançar em direção ao grupo em uma velocidade tal que parecia que ia explodir o mundo… explodiu, mas sem barulho nem estrago maior sobre a terra. A bola rompeu-se e, de seu interior saíram centenas de diabretes de uma perna só, barrete vermelho na cabeça e um cachimbo na boca …  a pele era bem escura, e os olhos… pareciam duas bolas de fogo, de tão vermelhos. Apesar do inusitado, não tinham aparência malévola. Na verdade, tinham altura e aparência de uma criança de uns oito, nove anos. E começaram a agir como crianças peraltas, fazendo diabruras mil no acampamento.  O gado, que a muito custo tinha sido contido, desta vez se esparramou pela campina… e os três homens ficaram parados, sem ação… não sabiam como agir diante da situação… Finalmente, depois de algum tempo, os pequenos seres sumiram pela mata, gargalhando ante as peraltices aprontadas. Não era uma gargalhada maldosa, apenas aquele riso franco de crianças que estão satisfeitas em aprontar travessuras… de qualquer forma, para os três não tinha remédio. Iriam passar o resto da noite tentando juntar novamente todo o gado… e rezar para não ter perdido nenhuma rês…

A noite, que tinha ficado clara durante a manifestação da estranha esfera e seus ocupantes, voltou a ficar na penumbra noturna. Os três homens, desanimados, procuraram seus cavalos… mas estes também  haviam se dispersado. Caminharam pela mata a procura dos animais, até que os encontraram, esfalfados, assustados… a crina e o rabo ostentavam tranças, travessura dos pequenos seres noturnos… Levaram algum tempo para acalmar suas montarias e finalmente começaram a busca pelo gado dispersado. Uísque foi de grande valia para eles, pois conseguia localizar as reses com relativa facilidade. Depois de umas duas, três horas, conseguiram reunir todas as cabeças em um só local. Examinaram os animais. Apesar de assustados, nenhum deles havia se machucado. Zacarias olhou desanimado para seus companheiros… O sol já despontava no horizonte, era hora de partirem… e nenhum deles tinha conseguido dormir um pouco, que fosse… essa seria uma viagem realmente difícil…

O sonho 

A noite já se fazia alta quando finalmente a comitiva adentrou o arraial. Ainda tinha um bom par de léguas até a fazenda, mas estarem no centro de sua comunidade já era um alento. Estavam famintos e cansados. Zacarias resolveu que pernoitariam por ali, e na manhã seguinte acabariam sua jornada. No final da rua principal havia um curral, já preparado para esse tipo de eventualidade. Seria um gasto a mais do que havia sido planejado, mas tanto os homens quanto os animais tinham chegado ao limite de suas forças. A noite insone, aliada a um dia não muito tranquilo, esgotou todas as energias do grupo.

Houve dois inícios de estouro da boiada, um porque uma das reses se assustou com um bem te vi que sentou-se em seu chifre e começou a cantar, o outro, quando uma serpente apareceu repentinamente frente ao gado e Zacarias teve que atirar no animal antes que ele picasse algum dos membros do grupo… sim, os animais estravam estressados e qualquer coisa que fugisse do normal era suficiente para que quisessem sair em disparada… como sempre, o grande aliado dos três companheiros era Uísque, que não se descuidava um segundo da peleja com o gado… o cachorro parecia incansável… corria frente ao grupo, depois farejava as moitas que se apresentassem à sua frente, olhava para seu dono, voltava correndo até onde ele estava, então voltava a correr para a ponta novamente, reiniciando todo o ciclo de sua jornada… e era isso que dava um pouco de ânimo aos cavaleiros…

Depois de cuidar dos animais, os três companheiros se dirigiram à pensão, que ficava próxima do curral. Teriam uma cama e uma refeição quente, depois de três dias na estrada… e é o que estavam precisando de verdade. Sentaram-se a mesa e enquanto aguardavam serem servidos, ficavam ouvindo as conversas das mesas próximas à sua. Zacarias logo se interessou por uma delas, e ficou atento, ouvindo o que falavam…

– É sério, isso aconteceu lá no Pé Preto…

– Deixa de conversa, rapaz… isso não tem como…

– Tô te falando… quando acharam o corpo, ele estava perfeitinho… não tinha nenhum arranhão…

– Então foi morte natural…

– Bom, sem as paqüera, é normal o vivente morrer…

– O povo fala demais…

– Não foi o povo que falou… foi o delegado, depois que conversou com o doutor…

– Vai dizer que o homem estava oco por dentro…

– Isso! Não tinha tripa, estâmo, rins, pulmão, figo… nada… só um vazio no peito…

– E o doutor percebeu só depois…

– Isso… o doutor ficou pasmado… como é que uma coisa dessas pode acontecer… mas aconteceu…

– Ainda acho que isso é brincadeira…

– Pior que não… aconteceu, mesmo… se duvida, é só perguntar pro seu delegado…  ele vai confirmar a história…

Zacarias resolveu entrar na conversa…

– Então acharam um corpo lá no Pé Preto…

– Sim, seu Zacarias… eu mesmo vi o corpo, com esses olhos que a terra há de comer…

– Parece que não é o primeiro, não é?

– Já é o quinto nesse mês…  e no mês passado foram doze…

– E ninguém nunca viu nada…

– Nem viu, nem escutou…

– E o delegado tem uma ideia…??

– Se  não acreditar no outro mundo, não vai descobrir o que aconteceu… tem um rezador lá prás bandas do Pé Vermeio que diz que é o Papa-Figo que está fazendo esse estrago todo…

– Tem certeza disso?

– Eu, não… quem tem é o seu Firmino, o rezador…

– Mas faz tempo que a gente não escuta causos do Papa Figo por aqui…

– É, mas parece que ele voltou… e com uma fome do cão!

– Ele só ataca gente, não é?

– Claro que não… é vivo, tá andando, ele ataca. Na Fazenda do seu Onofre o bichão matou dez vacas e cinco cavalos no mês passado… isso é o que a gente ficou sabendo… mas pode ter mais casos por aí…

Zacarias voltou para sua mesa, pensativo… é, essa quaresma estava meio pesada… se bem que, pelo que o pessoal estava comentando, esses ataques começaram lá pelo mês de dezembro, mais ou menos… teriam que redobrar os cuidados, para que não fossem vítimas do ataque da fera… mas, pensando bem… talvez os ataques cessassem logo… a fera nunca ficava tanto tempo assim em evidencia… talvez ela logo se recolhesse em seu reduto, como das outras vezes e deixasse as pessoas viverem em paz por mais sete anos…

– Que que foi, seu Zacarias?

– Nada, não… vamos tratar de dormir que amanhã ainda tem estrada pra gente caminhar…

E os três se recolheram para descansar depois da jornada do dia… mas Zacarias não conseguia deixar de pensar na história que ouvira no salão… tinha que falar para sua filha não andar sozinha pela mata… quanto mais se cuidasse, melhor… 

Logo o cansaço do dia venceu  e todos dormiam o sono dos justos… afinal, estavam em um lugar seguro, quentinho…  as esteiras estendidas no chão pareciam nuvens de tão macias e aconchegantes… não que realmente  fossem macias, mas estavam em um lugar seguro.  Os pelegos, quentinhos, protegiam o sono dos boiadeiros.  Estavam no mundo dos sonhos, onde tudo era perfeito…

Zacarias começou a sonhar, e em seu sonho estava caminhando por uma campina verde, tão verde que até ardia a vista. Era um lugar muito bonito. Ao longe, paineiras e ipês, todos floridos, fazendo um desenho tão bonito, que deixava o boiadeiro em êxtase…. lá no fundo, as montanhas que ele tanto amava… sim, o lugar era o paraíso na terra… 

De repente, sem aviso, a relva começou a escurecer, como se estivesse secando por falta d’agua. As flores dos ipês e das paineiras começaram a cair e seus troncos e galho começaram a se retorcer, até que as árvores simplesmente tombavam mortas, no chão… lá no fundo onde a serra começava, nuvens negras carregadas se formavam, e relâmpagos cortavam o céu em todas as direções… o sol foi se escondendo e a escuridão da noite tomou conta de todo o lugar. E a água veio com força, devastando tudo que estava à sua frente… então, da mesma maneira que veio, a chuva se foi… mas o ambiente continuava carregado, com uma aura pesada, que causava terror na alma sem que se soubesse o motivo… e Zacarias começou a rezar, apavorado com o medo que sentia… então, pouco a pouco, foi despertando, suado, tremendo, sem saber explicar o porque…

Autora:

Tania Miranda

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