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quarta-feira, 4 de setembro de 2024

O início…

A tarde estava chegando e Maria estava prestes a largar do eito. O dia de trabalho foi bom, ela conseguiu fazer além do que esperava. Isso significava um dinheiro extra no sábado. Ela olhou para o horizonte, onde a serra começava. O sol, avermelhado, pouco a pouco baixava no horizonte, dando lugar às primeiras brumas da noite. Todos os camaradas começavam a caminhar em direção a suas casas, já pensando em quantas quadras fariam no dia seguinte. Afinal, quanto mais produzissem, mais ganhariam. E quando a colheita se encerrasse na fazenda, com certeza alguns vizinhos teriam ainda serviço para ofertar àqueles que estivessem dispostos a caminhar um pouco mais. Graça estava um pouco apressada, e seguia bem a frente de Maria, pois a primeira ainda precisava buscar lenha para alimentar o fogão de sua casa. “Bem”, pensou Maria, “acho que mamãe também precisa de lenha para cozinhar…” e tratou de se apressar para alcançar a amiga. As duas começaram a conversar sobre banalidades do dia a dia, e seguiram em direção à mata. A noite já se fazia presente quando as duas finalmente se embrenharam por entre as árvores, à procura de gravetos que servissem para sua casa. Depois de uma hora, um pouco mais, um pouco menos, finalmente o feixe de lenha das duas estava pronto. Agora era só fazer o caminho de volta para o arruado… Graça estava um pouco receosa… afinal de contas, era lua cheia… estavam na quaresma… e estavam mais perto da serra do que da vila dos colonos… e tinha o boi-tatá circulando pelas montanhas… “tomara que ele não desça até o vale”, pensou com seus botões… o problema é que ela não tinha a menor ideia de onde era a origem da besta… e se a fera estivesse vindo da vila onde elas moravam? Podia muito bem ser dali… é claro que ela estava rezando para que não fosse, mas… bem, o melhor que as duas poderiam fazer naquele momento era se apressarem em voltar para casa. E tomar o máximo de cuidado… pois a noite às vezes trazia surpresas não muito agradáveis para a vida das pessoas do vilarejo… colocaram os feixes sobre suas cabeças e começaram a caminhar.  Depois de algum tempo, Maria perguntou para a amiga se ela não estava achando o caminho mais comprido na volta do que quando haviam entrado na mata. Graça havia percebido isso, mas não queria alarmar sua companheira. De qualquer forma, a Lua a muito já aparecera e subia lentamente no céu. Logo seria a hora das almas saírem pelo mundo, e as duas ali, perdidas no meio da mata… caminharam por mais algum tempo, e nada do fim da mata aparecer. Então Graça decidiu que era melhor pararem um pouco e rezarem, pois aí o caminho se abriria para elas.  Maria aceitou na hora, é claro. Afinal, já estava ficando apavorada com o fato de estarem caminhando a tanto tempo e aparentemente não avançarem em sua jornada. Primeiro se persignaram, depois começaram com o Pai Nosso, seguiram com uma Ave Maria e engataram uma Salve Rainha. Quando estavam na metade do Credo, a floresta foi se desvanecendo e perceberam que já estavam a poucos passos de suas casas. Sem se preocupar com o que havia ocorrido, as duas apressaram seus passos e logo cada uma estava em segurança em seu lar. É claro que Zacarias repreendeu a filha por esta ter saído da trilha e embrenhado na mata em plena noite, na Quaresma. A moça explicou que tinha reparado que o estoque de lenha estava quase no fim, e ela resolveu fazer companhia para sua amiga. Seu pai entendeu a situação, mas ainda assim alertou a garota de que tudo tinha sua hora certa para ser feita, e a noite não era para ser abusada… principalmente naquela estação… Maria deu de ombros.  Entendia a preocupação de seu pai, mas o que podia fazer? Deixar a amiga se embrenhar sozinha na floresta? Não achava isso correto, por isso resolveu seguir Graça, pois uma companhia ajudava e muito em uma hora de apuro. E Graça, muitas e muitas vezes, havia segurado suas mãos quando ela necessitou…

Já era um pouco tarde, quando Maria finalmente foi dormir. Antes havia ajudado sua mãe a finalizar as tarefas do dia… foi buscar água no ribeirão, que ficava a poucos metros de seu ranchinho, arrumou a lenha que trouxera junto com o que ainda tinha perto da cozinha, fizeram a comida que iriam levar para a roça no dia seguinte e prepararam o café que tomariam antes de pegar a estrada. Zacarias arrumou suas coisas, separou seu par de botinas e pegou a cartucheira, começando a limpá-la. Preparou a munição que eventualmente usaria, guardou os cartuchos já carregados, pendurou a espingarda na parede e finalmente se dirigiu ao seu quarto…

– O senhor vai sair em campanha, pai?

– Vou buscar umas cabeças de gado no Poço Grande. Seu Nardi comprou um rebanho, umas vinte cabeças mais ou menos…

– Vai sozinho?

– Não… vou eu, o Juca e o Tonhão…

– Voltam amanhã?

– Tá doida, menina? A gente não vai ficar andando à noite, não… a gente deve chegar aqui na fazenda daqui a uns dois ou três dias…

– Mas Poço Grande não é tão longe…

– Se a gente estiver com um bom cavalo e se a gente for direto prá lá… mas vamos conduzir uma pequena boiada… e as reses tem seu próprio tempo de marcha…

– E o senhor não tem medo de acampar na serra de noite, não?

– Medo, eu tenho…, mas o que não tem remédio, remediado está…

– E o boi-tatá?

Zacarias se persignou…

– Deixa de falar besteira, menina… quem leva Deus no coração e tem fé na Virgem Maria não tem medo de nada, nem desse, nem do outro mundo…

E sem dizer mais nada, Zacarias se recolheu…

Maria permaneceu sentada no banquinho ao lado do fogão por mais algum tempo. As brasas iam pouco a pouco se apagando… era hora de deitar, pois dali a algumas horas teria que voltar à labuta diária… seus pais e irmãos já estavam ressonando a algum tempo quando ela finalmente se deitou. De repente, uma sensação ruim tomou conta de seu corpo. Apavorada com a sensação, começou a rezar, desfiando todas as orações que conhecia. Mas aquele pavor sem explicação não abandonava seu ser…

A campanha 

Já era noite alta quando os três cavaleiros se aproximavam de seu destino. Haviam cavalgado o dia todo, parando apenas para comerem alguma coisa e os animais descansarem. Mas finalmente o destino estava próximo… a Fazenda do Lageado estava a apenas uma hora, talvez um pouco mais, de distância… e isso era bom por demais. Não haviam exigido muito de suas montarias… foram devagar, num passo lento, pois não viam necessidade de castigar os animais em uma corrida desenfreada. A campina, qual mar verde, descortinava-se a sua frente. É bem verdade que agora já não estava mais tão verde, afinal o véu escuro da noite a muita que já cobria toda a extensão da terra, desde a serra, que a muito deixaram para trás, até a mata na qual se embrenhariam em sua última etapa da viagem.

– Vamos parar um pouco, Zacarias? Os animais estão cansados…

– Melhor não, Tonhão… a gente já está perto, e logo descansamos na invernada…

O rapaz deu de ombros. Havia sugerido a parada porque realmente estava cansado… estavam em cima da sela a mais de três horas e com certeza os animais estavam tão cansados quanto ele. Mas Zacarias estava certo… era melhor se sacrificarem um pouquinho mais e descansar em segurança na fazenda. Continuaram na marcha mansa que vinham tocando, sem exigir muito de suas montarias. Uísque, o cachorro campeiro que os acompanhava, corria alguns metros à frente. De vez em quando parava, ficava farejando as moitas, olhava para os três boiadeiros, e voltava a correr pela campina. E assim foram nesse passo, até que finalmente avistaram a porteira da fazenda. Juca apeou, abriu a passagem para os companheiros e então continuaram estrada afora, até que avistaram a Casa Grande, a sede da fazenda. Ainda montados, bateram palmas frente à porta principal, até que uma luz bruxuleante de um lampião se fez avistar caminhando pela sala da casa…

– Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! (Alguém falou da sala, com as portas ainda fechadas)

– Para sempre seja louvado! (Responderam os três homens)

A porta se abriu e um senhor de uns sessenta anos finalmente apareceu. Olhou para os três, e finalmente dirigiu-se para Zacarias, o mais velho do grupo…

– São da Fazenda Santa Helena?

– Sim, senhor. Viemos buscar as reses que o senhor vendeu para o seu Nardi…

– Chegaram muito tarde da noite. Podem apear, vamos descansar e amanhã cedo vão ver o gado…

Não esperaram um segundo convite para desmontar. Desceram, tiraram os arreios dos animais, soltaram os mesmos no campo, para que também descansassem. Então seguiram para o alojamento dos vaqueiros, na verdade um grande galpão que servia como dormitório, quando algum camarada de outra fazenda chegava para buscar ou entregar gado. Juca pegou seu embornal e dele tirou uma panela, onde sua esposa tinha preparado um virado, que seria sua janta naquela noite. Seus parceiros fizeram o mesmo. Para arrematar a comida, uma garrafa de cachaça surgiu do nada nas mãos de Tonhão. Cada um tomou uma talagada da bebida, puxaram seus baixeiros e trataram de descansar, pois a lida no dia seguinte seria brava… afinal, se levaram um dia inteiro para chegarem até a fazenda sozinhos, a viagem inversa iria demorar o dobro do tempo, já que o gado andava bem mais devagar do que o desejado. Sim, eles sabiam que na noite seguinte teriam o céu como cobertor… só rezavam para que, de repente, não começasse a chover quando estivessem voltando para casa…

A noite foi tranquila, os três conseguiram descansar e quando o sol despontou no horizonte, já estavam a muito de pé, separando as reses que iriam levar para seu patrão. Finalmente estavam preparados para iniciar o retorno. E lá foram os três, Zacarias na frente, tocando o berrante, chamando o gado em sua caminhada. Tonhão vinha no meio, controlando a fila de animais, para que nenhum se desgarrasse. E fechando a coluna, Juca vinha no fim do grupo. cuidando para que os animais permanecessem no caminho que iriam percorrer. Uísque seguia junto de Zacarias, sempre atento aos comandos de seu dono. Se alguma res saia da fila que se formara, lá ia o cachorro fazer com que ela voltasse a formação original do grupo. 

E assim foram tocando o dia, parando de tempos em tempos tanto para que o gado não se cansasse em demasia, quanto para descansarem e fazerem suas refeições… afinal, a caminhada até Santa Helena seria longa… 

A noite estava caindo novamente, quando chegaram ao Ribeirão das Almas. O rio tinha esse nome por ter fama de mal assombrado. Diziam que nas noites de lua cheia as almas daqueles que haviam partido antes do tempo vinham ali para pedir ajuda dos vivos… o problema é que nem todas as almas eram pacíficas e, se você tivesse o azar de cruzar com uma alma penada e não fosse uma pessoa com fé muito forte… se não conhecesse algumas orações poderosas para te proteger… de qualquer forma, o grupo não tinha muita escolha. Apesar dos pesares, o lugar era o melhor que poderiam encontrar para o acampamento. Pastagem para o gado e seus animais, água com fartura, vegetação baixa, o que minimizava os perigos da estrada… e estavam exatamente no meio do percurso, o que significava que depois de um boa noite de sono, chegariam em seu destino à tardinha…, mas quem disse que teriam uma boa noite de sono? O Destino costuma pregar peças nos viventes, e Ele tinha preparado uma surpresa não muito agradável para os três companheiros…

Autora:

Tania Miranda

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