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domingo, 8 de setembro de 2024

53 – Uma longa noite…

Graça estava agitada. Seu sono não era um sono tranquilo… na verdade, estava tendo um sono cheio de imagens de pesadelos… todos os monstros das histórias que seu avô lhe contava quando era criança resolveram se manifestar em seu devaneio esta noite… mas por que justo nessa noite, quando tudo o que ela mais precisava era de uma boa noite de descanso, de repouso absoluto? Bem, esse é um dos grandes mistérios da vida… no momento em que você mais necessita de paz, para se recompor, é que seus tormentos internos costumam te atacar…

Logo que deitou, já caiu no sono. A principio um sono leve, tranquilo… mas depois, com o correr do tempo… um minuto… uma hora… um século? Como se conta o tempo no mundo dos sonhos? Ninguém sabe…. mas, de qualquer forma, depois de algum tempo no mundo dos sonhos, onde se viu em sua infância, brincando com bonecas feitas de espiga de milho, de repente essas ganharam vida e começaram a persegui-la… queriam machucá-la… Graça correu o quanto podia, até que chegou na beira do rio que passava próximo de sua casa. Sem pensar em nada, a garotinha atirou-se na água… e os monstrinhos voltaram a se tornar suas bonequinhas amadas…. claro que a menina não voltou atrás, tratou de nadar até a outra margem… e, de repente, viu-se no meio do jardim florido de sua mãe, onde rosas de todas as cores emanavam seu perfume delicioso no ar… as dálias, de todas as cores e formatos, cravos, cravinas, copos de leite, lírios, girassóis… uma profusão de cores e perfumes tal que a garota sentiu-se no Paraíso… até onde a vista alcançava apenas as flores dominavam o mundo…. e era uma profusão de cores e perfumes, enfeitadas ainda com as borboletas que esvoaçavam pelo jardim, disputando espaço com abelhas, grilos e cigarras…

Sim, o mundo era maravilhoso… o sol, cálido, banhava a terra com seus raios reconfortantes, dando para a menina uma sensação de paz e ternura que ela só sentia no colo de sua mãe… mas, de repente…

Sem saber exatamente o que acontecia, de repente uma sensação de medo, de terror se apossou da alma da criança… ela não sabia dizer exatamente o porque, mas o medo era tão grande que ela queria esconder-se no seio da terra…. o céu, daquele azul límpido que era, pouco a pouco foi se tornado escuro, embora não houvessem nuvens nem estivesse anoitecendo… era uma coisa estranha, difícil de entender e explicar… mas o mundo estava mudando… e não era apenas o firmamento… o próprio jardim começou a definhar e as flores tão belas de momentos atrás começaram a tomar um aspecto assustador… de repente ela sentiu-se como se estivesse presa dentro de um cemitério… sem lápides… e sentiu que precisava fugir daquele local o mais rápido que pudesse, ou simplesmente deixaria de existir… e começou a correr através daquilo que até instantes atrás era o Paraíso na terra… e que agora se assemelhava ao hall de entrada de Hades… estranhas aparições surgiam no céu e começaram a persegui-la. A menina corria como se mil demônios a estivessem perseguindo, e o pior é que realmente haviam demônios a persegui-la….

Rosa e Maria observavam a amiga se contrair, desesperada, em sua cama… o suor escorria por sua fronte, e mesmo de olhos fechados dava para notar em seu semblante o terror que dominava sua alma… Rosa chacoalhou a amiga até que esta despertasse… e quando abriu os olhos, a expressão de seu rosto era de alívio, pois conseguira escapar das portas do Inferno…

– Quer tomar um chazinho, para se acalmar?

– Não, Rosa… obrigada… Foi só um sonho ruim…

– Você rezou antes de dormir?

– Claro que sim, Maria… você sabe que não deito sem fazer minhas orações…

– Mas…

– Mas eu tive um pesadelo horrível… um, não… vários…

– Não faz nem meia hora que você deitou…

– Mas a sensação que tive é que estava a meses perdida naquele limbo…

– E agora?…

– Agora?  Que pergunta, Rosa… vamos dormir… o dia amanhã promete ser difícil…

E as três juntaram-se em uma nova oração, pedindo proteção divina para guardar seu sono e voltaram-se para suas camas…. logo as três caíram em um sono tranquilo e profundo… mas…

Graça se viu novamente caminhando pelos campos de sua adolescência, quando tinha  seus quatorze, quinze anos… nem fazia tanto tempo assim, já que ela completaria dali a alguns meses suas vinte primaveras… desta vez estava em companhia de Rina, sua cachorrinha de estimação que a muito fora correr nos grandes campos do céu… as duas corriam alegremente, a menina às vezes parava para olhar uma flor, e a cachorrinha voltava até ela, esperando um afago de carinho. Durante seu passeio, em certo momento, Rina estacou. Ficou à frente de sua dona, em posição de defesa… e começou a latir incessantemente…  Graça não conseguia entender o que estava ocorrendo…. então, uma nuvem escura parou frente a sua defensora… e, lentamente, transformou-se em uma linda mulher… Graça sentiu todo o seu corpo se arrepiar… era a temida Mulher de Branco que se apresentava a ela… a criatura não ousava aproximar-se da menina, porque sua cachorrinha não permitia… e, de repente, uma matilha de cães vieram em socorro de Rina, para auxiliá-la na defesa de sua dona e amiga…. a Mulher de Branco sorriu… um sorriso meigo e triste… pela sua postura, não havia de sua parte intenção de atacar Graça… era mais como se estivesse dando um aviso… mas o pavor tomava conta da moça e ela simplesmente não parava de tremer…

– Graça… acorda!

Era Maria, chacoalhando a amiga, para que essa despertasse…

– Graça, tudo bem com você?

Rosa, do outro lado da cama, ajudando Maria a acordar a amiga… as duas realmente estavam preocupadas…

– O que aconteceu? 

Era Graça, despertando, e perguntando às amigas sobre o que ocorria…

– Graça. você estava gemendo… era como se você estivesse morrendo…

– Menina, nunca me assustei tanto com alguém como me assustei contigo, agora… os pesadelos voltaram?

Graça assentiu com a cabeça… estava empapada de suor… e estava apavorada com o sonho que tivera… mas não iria contar para as amigas com o que sonhara… não queria deixá-las ainda mais assustadas… e assim as três passaram o resto da noite… tentando dormir, sem conseguir, pois a todo momento as duas moças tinham que socorrer a amiga, atormentada por pesadelos mil, e isso foi até o alvorecer, com o primeiro canto do galo… sim, um novo dia estava começando… mas não prometia nada de bom para as três garotas…

54 – Um pequeno descanso…

– Graça, não era melhor a gente tirar o dia para descansar?

Maria, vendo o estado deplorável da amiga, tentando convencê-la a ficar mais um tempinho na cama…

– Maria, você já viu que horas são?

_Sim… são quase duas da tarde…

– E até agora não consegui dormir um minuto que fosse… porque você acha que, se eu ficasse mais tempo aqui no quarto, eu conseguiria descansar?

– Não sei, amiga… o que posso dizer, com certeza, é que você não está em condições de ir a lugar algum…

– Se eu não te conhecesse, diria que está bêbada… nem consegue ficar em pé direito…

– Rosa… eu sei que vocês duas tem razão… mas o que posso fazer?  Simplesmente não consigo fechar os olhos e descansar… talvez, se eu sair na rua… talvez eu consiga dormir um pouco em algum lugar… e, quando chegar a hora de agir… talvez eu esteja… “sóbria”… porque, eu admito… estou bêbada de sono…

E assim, como contra fatos não há argumentos, as três ganharam a rua… pegaram seus cavalos e sairam em direção ao campo… talvez, respirando o ar da mata Graça se recuperasse… de qualquer forma, aquele não era o melhor dia para Graça sentir-se tão acabada como estava se sentindo… afinal, se tudo desse certo, estariam finalmente frente a frente com aquele que realmente interessava para elas… afinal, Zé Ferreira  tinha algo que as atraía como mariposas são atraídas pela luz… sua cabeça valia uma fortuna, e as três não viam a hora de conseguir colocar a mão no prêmio ofertado por um pai com o coração dilacerado…

É claro que procuravam pensar apenas no prêmio que iriam ganhar… afinal, se desumanizassem seu alvo, seria muito mais fácil capturá-lo… e, para isso, invocavam sempre a imagem da garota sendo abatida pela arma daquele que desejavam capturar. Era a melhor maneira, e não poderiam abrir mão dessa visão… afinal, cada uma delas precisava do dinheiro oferecido para resolver algum problema em sua vida… Rosa queria recomeçar em um lugar em que não a conhecessem. E prometia a si mesma que jamais permitiria que pisassem nela novamente… Maria queria o dinheiro para poder ajudar seus pais… embora fosse o capataz da fazenda, Zacarias não ganhava tanto assim, tanto é que viviam em situação de penúria… claro que haviam pessoas em pior situação, mas se pudesse melhorar um pouco as condições de vida de seus pais… Graça estava desesperada… sua mãe precisava de um tratamento na cidade grande, e para isso precisava de dinheiro para pagar o hospital. E não era pouco, não… por isso resolveu correr atrás de Ferreira… mesmo que dividissem a recompensa por dez, ainda seria possível pagar a estadia  de sua mãe no hospital, sem nenhum gasto  a mais além daquele que era praxe. Sim, a cabeça de Zé Ferreira seria a salvação da vida de sua querida mãezinha…

É claro que estavam contando com o dinheiro sem nem cogitarem que algo poderia dar errado.  E o pior é que, se existe uma chance de algo dar errado, com certeza, dará.

Depois de cavalgarem por algum tempo… e várias vezes Rosa e Maria ampararem Graça em sua montaria para que ela não caísse… as três resolveram fazer uma parada em um local arborizado. A tarde fresca ajudou Graça a entregar-se aos braços de Morfeu, e em poucos minutos estava relaxando nas portas do Paraíso… sim, a garota estava cansada e a parada foi essencial para que descansasse o corpo e a mente de uma noite que, se não foi em claro, também não lhe permitiu repousar um segundo que fosse.

Não dá para dizer que a causa era o ar puro da floresta, o campo não tão florido devido ao outono, mas o certo é que Graça caiu em um sono profundo e assim permaneceu por um bom par de horas… sem agitação, sem sonhos nem pesadelos… apenas descanso… quando finalmente acordou… por conta própria, já que a única coisa que suas amigas fizeram foi velar por seu sono… sentiu-se leve, descansada. Toda aquela tensão da noite insone havia passado. É certo que não dormiu muito, mas o seu repouso deixou-a pronta para o que precisasse de sua atenção. Graça levantou-se, alongou seu corpo como uma gata selvagem e finalmente a garota alegre e brincalhona estava de volta… Sim, o cochilo que tirou sob a fronde da paineira deixou-a nova em folha… Graça até resolveu correr um pouco pelo campo, como se fosse criança ainda… e, em sua imaginação, Rina ainda a acompanhava…

Maria e Rosa ficaram observando a amiga e finalmente se tranquilizaram. A velha Graça estava de volta, feliz, alegre, cheia de energia… sim, agora as três estavam prontas para o que desse e viesse…  bem, é claro que, primeiro, teriam que enfrentar um bom prato de barreado… Graça reclamou que estava faminta como se a dias não comesse nada… sem dizer uma palavra, as amigas montaram seus cavalos e começaram a caminhar em direção ao povoado… destino? o restaurante da Pensão, é obvio…

– Menina, pensei que você não ia mais parar de comer…
– Deixa de ser chata, Maria… eu estava com fome…

– Com fome? Meu Deus do céu… você comeu por nós três juntas por uma semana…

– É, Graça, a Rosa está certa… você nunca comeu tanto, assim… não até hoje, pelo menos…

– Meninas, entendam… eu estava morrendo de fome… e precisava saciá-la… e não tenho culpa se a comida estava tão gostosa…

– É, a gente percebeu… até jiló você comeu….

– O que é que tem o jiló?

– Bom, Rosa, é que a Graça detesta jiló… e hoje, comeu quase que uma panela inteira sozinha… 

– Maria, a culpa não é minha… aquela polenta com o frango e o jiló estavam muito bom… não consegui parar de comer…

– Tudo bem… está satisfeita, agora?

– Sim… 

– Então, que tal a gente caminhar um pouco para que você possa fazer a digestão?

– E vocês duas, não?…

 – A gente também, é claro… mas não comemos nem um terço do que você devorou…

– Exageradas…

As três riram… pagaram a conta e ganharam a rua, em direção à praça do vilarejo. Havia algumas duplas cantando e Maria pediu para assistirem… já fazia algum tempo que ela não apreciava uma apresentação musical… e por que não aproveitar a oportunidade, não é mesmo?

Enquanto apreciavam o desfile de violeiros que se apresentavam no coreto, as três amigas observavam as pessoas que passavam pelos arredores. Estavam procurando uma pessoa… e por isso, ficavam atentas a cada novo rosto que despontava na multidão. Como Maria era a única que realmente conhecia Zé Ferreira, cada vez que Rosa e Graça avistavam alguém que correspondesse às características fornecidas por Maria, tratavam de consultá-la… mas já se passara um par de horas e até o momento a vigília se mostrava infrutífera.  Mas sabiam que não deveriam desistir. A melhor chance de encontrar o “seu” procurado era ali… afinal, quem é que não gosta de ouvir uma viola bem afinada, acompanhada por um dueto perfeito, não é mesmo? E assim, ficaram as três, com um olho no peixe e outro no gato, como se costuma dizer….

Em um dado momento, Maria cochichou no ouvido de Graça, no que essa, de pronto respondeu…

– Você é louca, não é?

– Graça, a gente já cantou junto… e lá de cima do coreto, dá prá ver toda a praça…

– Sei, mas…

 – E não adianta fazer essa cara… eu sei que você gosta de cantar… e arranha um pouco um violão…

– Tá, tá… digamos que eu topasse… a gente não tem instrumento para usar, já percebeu isso?

– Quer apostar quanto que qualquer um desses violeiros nos empresta uma viola? E se quiserem nos acompanhar tocando, melhor ainda…

– Está bem, sua louca… vamos lá… o que a gente tem a perder?

– Exatamente… o que a gente tem a perder?

Rosa olhou para as duas… vendo que falavam sério, perguntou…

– E eu? O que é que eu faço?

 – Fica atenta… qualquer coisa, vem em nosso socorro…

E as duas caminharam em direção ao coreto…

Autora:

Tania Miranda

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