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domingo, 8 de setembro de 2024

50 – Convocado

Tonhão acordou tranquilo, aquela manhã. Uma paz imensa dominava sua alma. Como de costume, levantou-se às três e meia, tomou seu café com farinha de milho, fumou um cigarrinho, calçou as botas e lá se foi, em direção à mangueira, para iniciar seu trabalho junto às vacas leiteiras. Estava claro, não porque já estivesse amanhecendo, mas sim graças à lua cheia e resplandecente que brilhava no céu…  Ele começou a lavar todo o local, para dali a algum tempo, quando a assepsia estivesse concluída, conduzir o gado até ali para poder ordenhá-las. Trabalhar sozinho não era muito fácil, mas por outro lado não havia tanto trabalho assim que justificasse mais uma pessoa… então o negócio era entrar de cabeça no serviço, mesmo que sentisse falta de ter alguém com quem conversar.

Os primeiros raios de sol despontavam nas montanhas, fazendo aquele desenho lindo, digno de figurar em qualquer parede, enfeitando o ambiente. O tom laranja-avermelhado prenunciava um dia quente, o que seria uma surpresa, já que nos dias anteriores o que havia dominado o tempo era o frio…. até o vento matinal estava com uma sensação aconchegante, cálida… não era aquele vento gelado, que costuma acariciar os corpos pela manhã. Tonhão estava acondicionando os galões de leite no velho carro de boi, tomando muito cuidado para que os mesmos não entornassem… coisa não tão dificil assim de acontecer. Depois de amarrar cuidadosamente os recepientes no carro, começou a conduzir sua parelha. Era um longo caminho pela frente, mas não tinha pressa alguma…

Enquanto conduzia seu carro de boi, ficou olhando as vacas, que já se protegiam na sombra do calipal, cuja função principal era justamente essa… fornecer sombra para o descanso do gado lactante. Algumas reses caminhavam até o cocho, onde sua ração as esperava, outras iam até o bebedouro, mas a maioria estava mesmo é procurando uma sombra para se refrescar… sim, o dia seria quente. O que poderia significar chuva mais tarde…o que não era muito comum para o período, uma vez que o outono já se iniciara a um bom par de semanas… em todo caso, o cheiro das folhas de eucalipto, espalhado pelo vento que soprava mansamente, deixava o ar com uma sensação de paz, pois era um cheiro inebriante e agradável… 

Já passava das dez quando Tonhão retornou para o rebanho. Era hora de verificar as condições das reses, confirmar que todas estavam confortáveis no campo… No cocho, pedaços de cana, junto com pedras de sal, para o deleite dos animais. E a água abundante no bebedouro as deixava tranquilas, pois não precisariam deslocar-se muito atrás do líquido tão caro aos seres viventes… O rapaz estava entretido na lida com o gado, que nem percebeu a chegada de Zacarias. Livre da tipóia, esbanjando saúde… claro que nos limites da idade. Zacarias apeou fora da cerca que delimitava o pasto, e dirigiu-se até o rapaz. Quando colocou a mão no ombro do amigo, esse deu um salto para trás, tamanho foi o susto que levou…

– Seu Zacarias, não faz isso não, homem de Deus…

– Nossa Senhora… você quase chegou na serra, com esse pulo! Tudo isso é medo, menino?

– Não ví o senhor chegando…

– Percebi… estava distraído com o gado, não é mesmo?

– Sim… seu Zacarias, tem coisa melhor na vida do que isso?

– Acho que não… se elas estão tranquilas, te deixam tranquilo, também…

– Além do perfume no ar… sinceramente, eu não queria outra vida que não fosse essa…

– Pois era justamente isso que eu vinha te perguntar… se você queria voltar prá lida com o gado, nos outros pastos…

– Posso escolher, de verdade?

– Claro, menino… se não pudesse, eu não estava te perguntando…

– Nesse caso, eu queria continuar cuidando do gado leiteiro…

– Não vai sentir saudade das campanhas?

– O senhor cuidava das duas coisas… posso fazer isso também, não?

– Não… eu cuidava porque não tinha ninguém para fazer o serviço antes…. e quando eu viajava, as minha filhas cuidavam do serviço prá mim… no seu caso, quem você ia deixar responsável?

– Tem razão… não tenho ninguém…

– Infelizmente… mas é o ciclo da vida, rapaz… a gente nasce, cresce, casa, tem filhos, envelhece e um belo de um dia, morre… foi assim com meus pais, foi assim com seus pais, vai ser assim comigo… e com você, também…

– O senhor acredita que esta noite sonhei com meus pais?

– Foi um sonho bom?

– Bom, eu era criança e corria pelo vale, como fazia em minha infância…. e meus pais estavam ali, cuidando de mim…

– Então foi um sonho bom…

– Mais ou menos… de repente, o sonho virou pesadelo…

– Como assim?!

– Bom… do nada, a água do rio ficou preta….

– Sei…

– E o cheiro? Meu Deus, não dá para descrever o pavor que sentí…

– E depois?

– Bom, depois eu acordei… rezei, voltei prá cama e dormi até o galo cantar…

– Isso é bom… então você quer continuar com o gado leiteiro… 

– Sim, seu Zacarias… se eu puder, eu prefiro…

– Tudo bem, então… se precisar de ajuda, é só pedir…

Os dois homens ficaram em silêncio por alguns momentos. Tonhão olhou para além da cerca, e chamou a atenção de seu chefe e amigo…

– Seu Zacarias… tem alguém vindo prá cá…

Zacarias olhou para a direção em que o rapaz apontava. Murmurou mais para ele mesmo que para seu parceiro ouvir…

– Aposto que é o delegado Vicente…

– Será? O que ele iria querer com a gente?

– Daqui a pouco a gente fica sabendo… ele já está bem perto.

De fato, transcorridos alguns minutos, Juvêncio apeava ao lado do cavalo de Zacarias e , pronto, caminhava de encontro aos dois. Cumprimentou-os e tratou de atravessar a cerca, para poderem conversar melhor…

– Seu Zacarias, fui até sua casa e me disseram que o senhor estava aqui..
– Sim, seu Vicente… já fiquei muito tempo de molho… é hora de voltar ao trabalho…

– O senhor se incomodava se a gente tivesse um dedinho de prosa?

– Pode falar, homem… estou ouvindo…

– E o rapaz… ?

– Seu Vicente, aqui a gente já nasce no meio da esquisitice… não se preocupe, que não importa sobre o que o senhor fale, ele não vai estranhar…

– Se o senhor está dizendo…

Percebendo que Juvêncio queria conversar mais tranquilamente, sem ouvidos estranhos próximos à conversa, Tonhão se despediu de seu chefe e foi em direção ao gado, que estava todo espalhado…. ele realmente precisava fazer uma inspeção das reses, e essa era a melhor hora…. depois que o rapaz já estava distante dos dois, Juvêncio começou a falar…

– O senhor sabe que ontem fui obrigado a sacrificar um cidadão de sua comunidade…

-Fiquei sabendo… o senhor foi acompanhado do Padre e de mais cinco amigos….

– Sim… e devo te confessar que não tive prazer algum naquilo que fiz…

– Mas fez… o pessoal está chocado até agora…

– O que era preferível… fazer o que eu fiz ou deixar a fera atacar as pessoas?

– Mas ele iria atacar?

– Seu Zacarias, na noite anterior ele simplesmente destroçou um infeliz que deu o azar de cruzar seu caminho.  O amigo do infeliz só escapou vivo porque a fera estava muito ocupada destroçando a vítima…

– Eu…

– Eu sei o que o senhor está pensando… deveria ter outro jeito de cuidar da situação… infelizmente, não tinha…

– Mas…

– Seu Zacarias, prá nossa sorte, ele ainda conservava um pouco de sua percepção humana, não estava totalmente transformado… mas mais uns dois ou tres dias e a metamorfose se completaria.E aí, meu amigo… só Deus prá nos ajudar…

Os dois homens ficaram em silêncio por um longo tempo, imersos em seus pensamentos. Cada um deles tentando encontrar uma saida para as situações que ora se apresentavam, cientes de que não havia nenhuma… Juvêncio foi o primeiro a quebrar o silêncio constrangedor entre os dois…

– Seu Zacarias, preciso de sua ajuda para acabar com as manifestações que estão atacando sua região. Sério. Mas para isso, tenho que tomar atitudes que não gostaria… o senhor acha que a ação de ontem, eu a fiz sentindo prazer?

–  Eu não disse isso…

– Não… mas o tom de reprovação está gritante em sua voz…

– Não posso reprovar a sua ação… eu não estava presente na hora….

– Exatamente. Só quem estava dando a cara a tapa naquele instante é que pode opinar sobre o que ocorreu…

– Eu…

– Seu Zacarias, escute com atenção… eu preciso que o senhor me fale sobre todos os monstros que habitam esta região.

– Por que?

– Porque quem os  controla é a Mulher de Branco… até o boi tatá ela está influenciando…

– Como o senhor sabe?

– Porque eu a vi, meu amigo…não ela, propriamente dito… mas uma imagem projetada por ela…

– Então..

– Alguem a invocou… e quanto mais cedo a gente descobrir quem foi, menos risco de que ela fira alguem…

– E o que o senhor sugere?

– O senhor poderia ir à delegacia hoje à tarde?

– Porque?

– Eu queria fazer uma reunião… o senhor, o doutor Alberto, o delegado Duarte e a professora Alice… acho que nós cinco juntos podemos achar uma saída para esse problema…

– A que horas?

– Umas cinco, está bom para o senhor?

– Estarei lá…

-Então vou ficar esperando o senhor…. até mais ver, seu Zacarias…

Juvêncio voltou para Tornado, montou e partiu em direção à cidade. Zacarias ficou observando o Delegado se afastar, enquanto se perdia em seus pensamentos…. o que iria acontecer dali para a frente? Só Deus poderia responder…

Autora:

Tania Miranda

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