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domingo, 8 de setembro de 2024

43 – Mais um dia…

– Apeia, seu Vicente…

– Agradecido, seu Zacarias… precisava de uns dois dedos de prosa com o senhor…

– Então vem… Rosário acabou de assar uma broa de milho que estala no céu da boca… e a chaleira tá cheia de café fresquinho…

– Obrigado, seu Zacarias… não precisa se preocupar…

– Ora, seu moço, deixa de fazer fita, e vamos logo… senão a broa e o café vão esfriar…

Juvêncio não esperou um segundo convite. Desmontou de Tornado, deixou o animal solto em frente à casa e acompanhou seu anfitrião. Rosário estava cuidando da cozinha… já a alguns dias não ia para a roça, pois estava cuidando de Constância, a mãe de Graça. O estado de saúde da mulher estava piorando, e já não sabiam o que fazer com ela, uma vez que o doutor havia sido enfático nesse ponto… ela teria que ir para um Hospital na Capital, pois ali eles não teriam meios para cuidar dela… o problema é que não faziam a menor ideia de onde Graça poderia estar, e acabavam ficando de mãos amarradas, pois não sabiam o que fazer….

Os dois homens sentaram-se à mesa, e se serviram da chaleira, despejando o café nas canecas feitas de latas de conserva, muito comuns por aquelas bandas. Como o café estava quente, era um tanto e quanto incômodo levar a caneca à boca, pois o metal estava tão quente quanto o liquido que ele comportava…. Rosário, vendo os dois homens apanhando com as canecas, foi até o armário e pegou duas xícaras de bom tamanho, feitas de argila… mais propícias para o café do que as canecas…

– Quer queimar a boca do moço, Zacarias?

– Foi o que encontrei na mesa….

-Essas canecas são prá beber água, homem de Deus… bebida quente, ou na caneca de ágata ou nessas xícaras…

– E eu lá achei caneca de ágata ou xícara?!… Cada coisa…

Juvêncio, embora aparentasse estar sério por fora, estava a rir a bandeiras despregadas por dentro. Não havia dúvidas, pensou… a casa realmente era território das mulheres… por mais que tentassem, os homens não conseguiam localizar nada dentro do território delas, se estas não os ajudassem…

Resolvido o impasse das canecas… estava bem mais fácil tomar o café agora, e as broas, com manteiga e um queijo fresquinho que Rosário lhes serviu, realmente podiam ser chamadas de um manjar dos deuses…  enquanto comiam, ficavam em silêncio, compenetrados, pensativos… procurando o melhor jeito de abordarem os assuntos que lhes interessava… sim, pois tanto Juvêncio quanto Zacarias tinham muitas perguntas sem respostas e com certeza esperavam que  a conversa que teriam ajudaria a esclarecer alguns pontos. Ouviu-se um gemido, Rosário foi para o quarto. Depois de alguns instantes, voltou, com ar desanimado estampado no rosto…

– O que aconteceu, Rosário?

– A Constância… está ardendo em febre….

– Deu o remédio prá ela?

– Dei… mas não resolveu….

– Desculpa, seu Zacarias… mas o que está acontecendo?

– Estamos cuidando de uma amiga… ela precisa de cuidados em um hospital… mas a gente não tem dinheiro nem prá mandar ela prá lá, nem prá pagar as despesas… a filha resolveu caçar um criminoso para embolsar a recompensa por ele, para poder mandar a mãe para a Capital… mas acho que não vai conseguir o dinheiro a tempo…

Juvêncio ficou pensativo…. então, olhando para Zacarias, falou…

– Quando o senhor pode mandar ela pro hospital?

– Quando a gente conseguir o dinheiro…

– Não se preocupe com isso… dá prá fazer isso agora?

– Claro… mas…

– Não se preocupe, eu já disse… tome as providências necessárias…. 

– Bom, então tenho que chamar o doutor Alberto…

– O legista?!

– O faz tudo… ele cuida das pessoas desde que nascem até quando morrem, por essas bandas….

– Entendi… bom, vamos fazer assim… eu vou buscar o doutor lá na vila, enquanto isso o senhor vai ajeitando tudo prá que a senhora possa ir pro hospital…

– Agradecido, seu Vicente… na verdade, a gente já não sabia o que fazer com a Constância…

Juvêncio montou seu alazão e partiu para a vila, buscar o médico como havia prometido. Não conseguiu nem começar a conversa que precisava ter com Zacarias… mas cada coisa tem seu tempo, não é mesmo? A sua filosofia era “nada na vida acontece por acaso” e isso se provou verdade nesse momento… afinal ele tinha ido à casa de Zacarias para falarem dos eventos que estavam ocorrendo nas redondezas, e acabou socorrendo uma pessoa doente… se isso não era a mão do destino, então o que seria? Juvêncio apeou na praça, perto do coreto e deixou Tornado ali… o consultório de Alberto não deveria ser longe do local, então ele parou um pouco, tentando se localizar..

– Perdido nos pensamentos, seu Vicente?

Juvêncio voltou-se rapidamente em direção à voz… era Alice…

– O senhor estava em outro mundo, eu acho… eu o chamei umas cinco vezes, até que me ouvisse…

– Perdão, senhorita… é que estou procurando o consultório do doutor Alberto…

– Bem, fica ali, perto da barbearia… mas o senhor não vai encontrá-lo lá agora…

– Não? E onde estaria?

– Na delegacia… o Duarte o chamou agora de manhã, e disse que era urgente… 

– Obrigado moça… vou prá lá, então…

E lá se foi Juvêncio a passos largos em direção à delegacia… e Alice ficou olhado ele se afastar… e não segurou um suspiro, acompanhado de um leve sorriso… sim, tinha alguma coisa nesse homem que a atraía…

– Duarte, isso é impossível…

– Impossível ou não, doutor, está lá…

– Desculpem a intromissão, mas o que é impossível?

Os dois homens se voltaram e viram Juvêncio parado na porta da sala. O primeiro a falar foi Duarte…

– Lembra do morto que sumiu?

– O que tem ele?

– Está atacando as pessoas… ontem matou um homem lá perto do rio…

– E como sabe que era ele?

– Estavam em dois… um conseguiu fugir…

– E o corpo?

– Dilacerado… e totalmente sem sangue…

– Não entendi… 

– Bom, pelo que entendi, era o Manoel. E não era, ao mesmo tempo. O rapaz que me reportou o fato disse que ele parecia um grande morcego…. e que, ao encontrar os dois, pulou sobre seu amigo.. é claro que ele deu no pé, pois não queria acabar como o companheiro…

– Entendi, Duarte… bem, ao que parece, os serviços do doutor Alberto não são tão necessários assim aqui… afinal, um já está morto, e o atacante, pelo que me contaram, precisa ser despachado… mas também já está morto…

– Mais ou menos isso…

– Doutor, acho que é mais urgente cuidar dos vivos…. o senhor poderia ir ver a dona Constância, na casa do seu Zacarias? Estão preparando tudo para mandar a mulher para a Capital…

– Conseguiram o dinheiro?

– Não… eu vou pagar.

– O senhor sabe que vai ficar caro, não?

– Dinheiro não é problema, nunca foi… o senhor pode ir até lá, por favor? Vou conversar com o delegado um pouco e já vou prá lá, também…

Sem responder, Alberto pegou sua maleta e saiu rapidamente. Juvêncio tinha razão, os mortos poderiam esperar. Os vivos, não…

44 – Mané Da Tiana

Desde o dia em que encontraram a estranha criatura atacando o gado que Juca redobrou seus cuidados com a segurança dos pastos. Agora haviam seis cavaleiros rondando toda a região dia e noite, sempre em dupla, para que um protegesse as costas do outro. E, a qualquer sinal de anormalidade… não importava o que fosse, a ordem era chamar os outros cavaleiros para ajudar… sim, Juca realmente ficou preocupado com os últimos acontecimentos da região. E isso porque ele não sabia que haviam encontrado o corpo de Manoel com uma das balas que ele havia disparado, e que depois este havia desaparecido. E que o haviam avistado em uma cena de carnificina… bom, ele conhecia Manoel a um bom tempo, e jamais suspeitaria que o amigo de copo seria, de alguma forma, um monstro. Mesmo porque o Mané da Tiana, como os amigos costumavam chamá-lo, era uma pessoa extremamente agradável de se conversar. Nada havia nele que denunciasse qualquer coisa de estanho em seu comportamento. Era educado, cortês… reservado, como todo caboclo. Talvez a única estranheza do amigo fosse seu sumiço de tempos em tempos… geralmente na semana da Lua Cheia… mas Juca nunca havia ligado uma coisa com a outra. Fazia já alguns dias que não encontrava Manoel em lugar algum… nem na roça, o que era absolutamente normal, já que ele trabalhava nos pastos, e quase não via os roceiros no dia a dia, mas também não o tinha visto na venda, depois do horário de trabalho… mas como de vez em quando o amigo sumia de vista, ele não estranhou…

Juca fazia sua ronda de inspeção como sempre, quando avistou alguma coisa estranha em um dos pontos do pasto…. parecia uma sombra tentando se esconder entre a vegetação… o rapaz olhou uma vez, duas… e a sensação de ter visto algo se mexer era forte, embora nada mais pudesse ser notado. Seu primeiro ímpeto foi seguir adiante, continuar sua ronda. Mas sua curiosidade foi maior… e se fosse algum predador escondido nas moitas, pronto para atacar as reses? Fazia tempo que isso não acontecia, mas sempre poderia haver alguma onça caçando pela região…. claro que era loucura ir sozinho ver que tipo de animal estaria se escondendo ali … afinal, se o mesmo se sentisse acuado, com certeza o atacaria. Mas para evitar surpresa, ele não desmontaria. E quando estivesse próximo do local, faria alguns disparos para o alto. Isso com certeza espantaria qualquer animal que estivesse escondido ali… e foi o que fez. Mas nenhum animal saiu correndo por entre a mata. E isso deixou Juca ainda mais curioso, uma vez que percebeu um leve tremor entre a vegetação. Tinha alguma coisa ali… e ele tinha que ver o que era… burrice? Sim. Se Zacarias soubesse o que ele estava prestes a fazer, com certeza o repreenderia. Mas, se não o fizesse, ficaria o dia todo preocupado com algo que poderia não ser nada…

Quando estava a uns cinquenta metros da touceira onde percebeu o movimento, apeou com todo cuidado. Procurou um lugar para prender seu cavalo… não gostaria de ficar a pé, dependendo do que encontrasse escondido no meio do mato…e aí uma dúvida o assaltou… e se fosse uma sucuri? Menos mal se fosse uma jiboia… bem, fosse o que fosse, não sairia dali sem ter certeza de nada perigoso estava assolando o lugar… de repente, aquele cheiro de carniça chegou às suas narinas. Era tão forte que deu vontade de vomitar. Juca parou, virou o rosto de lado… cobriu o nariz com o lenço… melhorou um pouco, mas o cheiro ainda estava forte. Seu cavalo estava agitado. Juca entendeu que, se não tivesse prendido o animal fortemente na árvore, teria ficado a pé… pois seu cavalo começou a demonstrar claramente que o único lugar da terra em que ele não queria estar era ali… O rapaz sacou seu rifle, examinou o mesmo, para confirmar que estava carregado, verificou seus revolveres… tudo ok, dava para começar uma pequena revolução… e lá foi ele, pé ante pé, em direção ao local suspeito… todos os seus sentidos em alerta, pronto para tomar uma atitude… e o cheiro, cada vez mais forte… usando o cano do rifle para afastar a vegetação de sua frente, Juca ia avançando pela mata… até que…

O rapaz estava preparado para tudo, mas com certeza, não para aquela visão… na sua frente, tentando proteger-se dos raios de sol, estava uma criatura que parecia ter surgido do mais horrível de seus pesadelos… um misto de lobo e morcego, mas com uma aparência humana… e Juca imediatamente reconheceu quem era, apesar do aspecto monstruoso…

– Mané da Tiana?!…..

O estranho ser o olhou… a dor que estava sentindo estava estampada em seu rosto, e a criatura se encolhia toda, tentado proteger-se da luz do dia… dava para ver que estava ferida, várias queimaduras se espalhavam por sua face e braços…. Juca o olhou novamente, e entendeu que a criatura precisava proteger-se do sol… foi até seu cavalo, pegou uma manta que tinha na sela, e com ela cobriu aquele que foi seu amigo. Este olhou para ele agradecido. Aparentemente, o tecido grosso havia ajudado a controlar os raios de sol que atingiam a pele da criatura. Sentado em frente a Juca, o estranho ser resolveu começar a falar…

– Juca… eu… eu… não queria… fazer… nada… nada disso…

– Fazer o que, Mané?

– Olha… eu… eu matei algumas… reses… eu precisava … do sangue… delas… prá sobreviver….

– Então era você…

– Sim… eu… eu… preci… preciso de… sangue… entende?

– Não. Não entendo….

– Olha… olha prá… mim… eu… eu não sou… como vo… você…

– Continuo não entendendo…

– A.. a um tempo… atrás… eu… eu encon… encontrei a… a mu… mulher de … branco….

– Sei….

– Ela… ela me ata… atacou, Juca…. e aí eu… eu virei… isso que… que você… está vendo…

– Você encontrou a mulher de branco?

– Sim… ela… ela era… muito… bonita… e aí… ficou igual… igual eu… estou agora…. e me… atacou!

– Olha, eu…

– Ela é… ela é um… vampiro, Ju… Juca… e eu… eu também… sou um, ago… agora….

– E agora?

– Eu… eu não sei… ontem… eu… matei um … homem… minha se… sede esta… estava terrí… terrível! Só… só passou… depois que o… matei!

– E o que eu faço agora?

– Não… não sei… agora… de dia… não posso me…mexer… estou… paralisado… e o sol… me inco… incomoda! Es… estou com… com me… medo da noite…

– Porque?

– Por… porque… eu… eu sei… que vou… matar… de… novo! E eu… eu não… quero… isso! En… entende?

– Sim… mas o que eu posso fazer?

– Não… não sei… só… sei… que… quando a… noite chegar… eu vou voltar… a matar….

Juca aponta o rifle para aquilo que um dia foi o seu amigo, e puxa o gatilho. A criatura nem pestaneja.

– Agra… agradeço o que… o que você ten… tentou fazer…. mas… isso não… não me fere…

Juca abaixa o rifle e olha compadecido para Manoel. Este retribui o olhar, mas com um olhar triste, de quem já perdeu a esperança no mundo, na vida….

– Mané, vou tentar conseguir ajuda para você…

– A… única  for… forma de… de me… ajudar é… me matando!

Sem falar mais nada, o rapaz deu as costa para a criatura, montou seu cavalo e saiu em disparada, em direção à vila. Talvez o padre soubesse como resolver o problema. Pois o delegado, com certeza, não teria como dar um jeito na situação…

Autora:

Tania Miranda

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