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terça-feira, 27 de agosto de 2024

Zé Claudino

Devia ser umas cinco e meia, seis da manhã, mais ou menos. O céu estava escuro e uma chuvinha fina caia por sobre a terra. Os três boiadeiros já estavam na estrada, tocando a boiada com destino a Fazenda Santa Helena. Deveriam ter ainda umas duas, três horas de marcha lenta, pois não queriam cansar o gado, principalmente devido ao mal tempo que fazia.  Como sempre, Zacarias ia na frente, tocando seu berrante, Tonhão ia no meio, controlando o gado para não se dispersar e Juca fechando a coluna, para evitar que alguma res se desgarrasse do bando. E, ao lado dos três, o inseparável Uísque, sempre atento a caminhada do gado. Eles iam num passo lento, manso, sem pressa. Afinal, a parte mais complicada da viagem já havia sido vencida, e agora já estavam praticamente em casa… Zacarias estava com saudades de Rosário… e de seus filhos também, é claro. Mas Rosário era a sua companheira de anos, e sua imagem não abandonava o pensamento de Zacarias. Para ele, embora os anos tivessem passado para todos, a beleza trigueira de sua companheira continuava a mesma. É claro que os cabelos estavam branqueando… mas ele sempre dizia para a esposa que não tinha coisa mais linda no mundo que as mechas brancas que se formavam em seu cabelo… sim, os dois se amavam muito.  Claro que ficavam sempre algum tempo separados, afinal, Rosário trabalhava na lavoura, ora plantando ou colhendo arroz, feijão, batatas, café… e ele trabalhava com o gado… quando estava tudo calmo, era o leiteiro oficial da fazenda. Quando a situação exigia, era o carreiro, o vaqueiro, o boiadeiro… estava sempre de prontidão para o que desse e viesse. Tonhão era um rapaz de uns vinte e poucos anos. Tez escura, descendia de bugre e negro… seu pai havia sido caçado no laço quando era criança, e foi adotado por uma família de roceiros, sua mãe era uma ex escrava. Os dois se conheceram, se gostaram e casaram. Simples assim. E dessa união vieram cinco filhos, sendo o Tonhão o filho do meio. Tonhão tinha um porte atlético, e era bem afeiçoado. As moças da fazenda e dos arredores suspiravam por seu amor, mas ele só tinha uma pessoa em seu coração… Maria, a filha de Zacarias. O diabo é que a moça não dava a menor pelota para ele, era como se fosse invisível… não é que ela não gostasse dele, até gostava, mas como irmão… e não era dessa forma que ele desejava ser visto por ela, que era sua pretendida… Zacarias sabia dos sentimentos do rapaz por sua filha, mas preferia não dar palpites. “O que tiver que acontecer, acontece”, disse uma vez para o rapaz, à guisa de conselho. E mais não falaram sobre o assunto. Juca tinha uns vinte anos, também. Cabelos vermelhos, sardento, era chamado carinhosamente por seus amigos de “sarará”… é claro que não gostava muito da expressão, mas fazer o que? Se se irritasse com o apelido, aí é que realmente iria colar… então, levava na esportiva… era bom na viola, e tinha uma voz que encantava a todo mundo. Sempre que havia uma festa na fazenda, ou em algum lugar onde sua fama já tinha alcançado, era chamado para alegrar a festa. E aí, se acabava fazendo aquilo que mais gostava de fazer na vida, que era cantar e tocar. E aí, a noite toda executava com sua viola cururús, catiras, toadas, valsas… e o povo sempre aplaudindo e pedindo mais… sim, a vida era boa, no sertão… tinha seus perrengues? Claro que sim… a vida sempre tem seus perrengues. Mas os momentos de alegria eram marcantes, e faziam com que a vida valesse a pena de ser vivida em cada segundo que estivessem sobre a terra…

Já fazia um par de horas que caminhavam pela estrada barrenta, quando ao longe avistaram um ranchinho … por sobre as paredes, uma roseira que havia se entranhado, toda florida… a muito que estava abandonado, não havia ninguém morando ali… Juca avançou até Zacarias e sugeriu que os três fizessem uma pausa ali, pois a chuva estava começando a engrossar. Sua sugestão foi aceita no ato, e os três trataram de acomodar o gado em um local que desse para controla-los até que a chuva passasse ou ao menos amenizasse um pouco. Depois de tudo arrumado, os três trataram de se proteger da chuva na construção abandonada. A muito que ninguém morava ali, dava para se notar. O chão de terra batida já tinha muita vegetação espalhada pelo cômodo. Até um pé de joá havia nascido dentro da casinha… e haviam alguns frutos já maduros.  Os três as colheram e se deliciaram com as frutinhas. Se acomodaram como podiam e ficaram observando o tempo, que continuava a derramar água sobre a terra. Foi então que Juca resolveu perguntar para Zacarias, o mais velho do grupo, sobre a casa…

– Faz tempo que isso foi abandonado, não é?

– Sim… aqui morava uma família… 

– Era Zé alguma coisa?

– Zé Claudino… boiadeiro, e dos bons…

– E o que aconteceu?

– Uma dessas tragédias que a vida prepara para a gente…

– Conheceu ele?

– Sim, a gente tocou muito gado junto… ele morava afastado da Fazenda porque na verdade trabalhava para quem pagasse mais. Como era muito bom, serviço é o que não lhe faltava. Tinha até a sua própria comitiva…

–  Sim, mas o que aconteceu?

– Bom, um dia o Zé foi buscar uma boiada lá pras bandas de Ouro Fino… ficou longe de casa acho que uns quinze dias… era época da chuva, mês de outubro…  época de chuva pesada, trovoada…

– Que nem agora?

– Bom, a gente tá entrando em março… daqui prá frente as chuvas vão diminuir… em outubro, não… as pancadas vêm forte… e quando vem uma chuva com trovoada…  que Deus ajude os viventes… ainda mais se vier com ventania…

– Então o Zé tinha ido prá Ouro Fino… e o que aconteceu?

– A chuva… veio forte. Parecia que o mundo ia desabar, dava a impressão que Deus tinha mandado outro dilúvio prá terra…

-Sei… mas e daí?

– Bom, vocês tão vendo que esse rancho fica bem longe de tudo… a casa mais perto fica a mais de uma légua daqui… 

– E?…

–  A chuva veio forte, e durou mais ou menos umas duas, três horas…

– Chuva forte não costuma durar tanto tempo assim…

– É difícil, mas as vezes acontece…

– Tá… choveu por três horas… e depois?

– Bom, era uma trovoada forte, como a muito ninguém tinha visto… os relâmpagos cortavam o céu, iluminando todo esse mundão de Deus….

– Continua…

– Bom… o que aconteceu, mesmo, a gente não sabe direito… o que se conta é que um raio caiu aqui no rancho e matou a mulher e o filho do Zé…

– Crendeuspai!…

– Dois dias depois o Zé chegou de viagem… imagina a situação…

– Dá nem prá imaginar…

– Depois que enterraram os corpos, o Zé caiu numa tristeza de dar dó… um dia ele arrumou suas coisas e partiu… e ninguém sabe prá onde ele foi…

– É… é uma história triste, mesmo… o pior é que ninguém está livre de passar por uma coisa dessas…

– Só rezando muito e pedindo proteção prá Deus, que cuide da gente e de nossa família…

Os três silenciaram… ficaram observando a chuva que, pouco a pouco foi parando. Quando o sol veio dar o ar de sua graça, os três já estavam tocando o gado pelo estradão, novamente. Uísque, como sempre, corria serelepe na frente… e a casinha, palco de uma tragédia no passado, ficou na beira da estrada, para servir de refúgio para aqueles que dela precisassem…   

Autora:

Tania Miranda

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