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terça-feira, 28 de outubro de 2025

Não É Só Religião: Conselhos Municipais Também São Espaço dos Povos de Terreiro

Os povos de terreiro e os conselhos municipais são uma combinação necessária e urgente. Por que as pessoas que frequentam terreiros não estão presentes nos conselhos municipais? Essa ausência não é acaso. Ela é a falha da política pública e já esta na hora de mudar essa realidade.

Mais Que Religião: Uma Cultura Completa

Primeiro, é importante entender algo fundamental. Os povos de terreiro não são apenas mais uma religião. Na verdade, representamos uma cultura completa. Temos nosso próprio jeito de viver, se organizar e se relacionar com o mundo.

Nos terreiros, as pessoas não só praticam rituais religiosos. Elas também:

  • Preservam conhecimentos ancestrais sobre plantas medicinais
  • Mantêm vivas tradições culinárias africanas
  • Praticam formas coletivas de cuidado e solidariedade
  • Desenvolvem arte, música e dança únicas
  • Criam redes de apoio social para quem mais precisa
  • Transmitem saberes sobre sustentabilidade e relação com a natureza

Por isso, a participação dos povos de terreiro nos conselhos municipais tem um significado especial. Não se trata de “dar espaço para todas as religiões igualmente”. Ao contrário, é reconhecer uma comunidade cultural específica. Ela tem costumes e vivências próprias que precisam estar representados nas decisões públicas.

O Que São os Conselhos Municipais

Os conselhos municipais reúnem pessoas para ajudar a prefeitura. Eles tomam decisões importantes sobre saúde, educação e assistência social. Metade dos membros vem do governo. A outra metade representa a população.

Esses espaços são muito importantes. É ali que decidem como usar o dinheiro público. Também definem quais políticas criar. Se um grupo da população não está representado, suas necessidades ficam invisíveis. Seus saberes também são ignorados pelo poder público.

Uma Comunidade com Direitos Específicos

O governo brasileiro já deu um passo importante. Ele reconheceu oficialmente que os povos de terreiro são “povos e comunidades tradicionais”. Portanto, eles têm direitos específicos. Esses direitos são diferentes de outras organizações religiosas comuns.

A Constituição brasileira garante que todas as pessoas têm direito à liberdade religiosa. Porém, ela vai além disso. Reconhece que existem comunidades tradicionais com culturas próprias. Essas comunidades precisam de proteção especial. Os povos de terreiro se encaixam perfeitamente nessa categoria.

Além disso, há uma lei federal de 2024. Ela criou a Política Nacional para Povos de Terreiro. Essa lei deixa claro algo importante: essas comunidades devem ter “mais participação no controle social”. Em outras palavras, devem estar presentes nos espaços onde tomam as decisões.

Conhecimentos Únicos para Políticas Melhores

Os povos de terreiro trazem conhecimentos únicos que podem melhorar muito as políticas públicas:

Saúde: Sabem sobre plantas medicinais e práticas de cuidado holístico que podem complementar o sistema de saúde oficial.

Assistência social: Têm experiência secular em cuidar de pessoas em situação de vulnerabilidade, criando redes de apoio e acolhimento.

Educação: Preservam conhecimentos sobre história africana, música, dança e tradições orais que enriquecem o ensino da cultura afro-brasileira.

Meio ambiente: Desenvolveram práticas sustentáveis de relação com a natureza que podem ajudar nas políticas ambientais.

Cultura: Mantêm vivas expressões artísticas e tradições que são patrimônio cultural brasileiro.

Como ignorar essa riqueza de conhecimentos na hora de fazer políticas públicas?​

Por Que Não É “Dar Espaço para Todas as Religiões”

Muita gente pode pensar: “se vamos dar espaço para terreiros, temos que dar para todas as religiões”. Mas essa visão não atende a questão.

Os povos de terreiro não querem apenas liberdade para praticar rituais. Na verdade, querem algo mais amplo. Desejam que seus conhecimentos culturais sejam considerados nas políticas públicas. Também querem que suas formas de organização social sejam reconhecidas.

É como reconhecer os direitos dos povos indígenas. Não é dar “privilégio religioso”. Ao invés disso, é reconhecer uma cultura específica. Ela tem jeitos próprios de viver que precisam ser respeitados. E devem ser aproveitados para o bem de toda a sociedade.

Outras religiões podem ter seus representantes nos conselhos. Elas conseguem isso através das organizações da sociedade civil comum. Porém, os povos de terreiro precisam de representação específica. Por quê? Porque são comunidades tradicionais com cultura própria. O próprio governo brasileiro reconheceu isso oficialmente.

Por Que Existe Resistência

A resistência à participação dos povos de terreiro tem uma raiz profunda. É o preconceito cultural por tudo que vem da África e dos escravizados.

Esse preconceito se manifesta quando:

  • Desqualificam os conhecimentos tradicionais como “superstição”
  • Ignoram a contribuição histórica dessas comunidades para a sociedade brasileira
  • Tratam suas práticas culturais como “folclore” em vez de cultura viva
  • Excluem seus saberes das políticas públicas

Essa exclusão cultural mantém o poder nas mãos dos mesmos grupos de sempre, impedindo que conhecimentos e perspectivas diferentes enriqueçam as decisões públicas.

Uma Questão de Justiça Cultural

A participação dos povos de terreiro nos conselhos municipais não é sobre religião – é sobre reconhecer uma cultura que ajudou a construir o Brasil e que tem muito a contribuir ainda.

Durante séculos, essas comunidades foram perseguidas não só por sua fé, mas por toda sua forma de vida. Seus conhecimentos foram desvalorizados, suas práticas criminalizadas, sua cultura desprezada.

Agora é hora de reparar essa injustiça histórica. Não basta permitir que pratiquemos nossos rituais em paz. É preciso reconhecer que somos detentores de saberes valiosos que podem melhorar a vida de toda a população.

Um Futuro Mais Rico Culturalmente

Imaginem uma cidade onde os conhecimentos dos povos de terreiro sejam aproveitados nas políticas de saúde, cultura e afins? Onde suas práticas de cuidado coletivo inspirem programas de assistência social. Onde sua relação sustentável com a natureza oriente as políticas ambientais.

Esse futuro é possível, mas só acontecerá se garantirmos que essas comunidades tenham voz nos conselhos municipais.

Não como favor, mas como reconhecimento de uma cultura que tem muito a ensinar.

A democracia brasileira ainda está em construção. Incluir os povos de terreiro nos conselhos municipais é reconhecer que o Brasil é feito de muitas culturas diferentes, e que todas merecem ser ouvidas e aproveitadas.

O momento é agora. A lei existe e ela deve ser cumprida.

* Pai Lucas de Xangô é Sacerdote e Diretor do Departamento da Natureza & Sustentabilidade da FENARC ( Federação Espiritualista Nacional Afro-Religiosa e Cultural), militante das causas ambientais e da valorização das religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul.

Pai Lucas de Xangô
Pai Lucas de Xangô
Sacerdote do C.E.U Reino de Xangô & Jurema, Diretor do Departamento da Natureza & Sustentabilidade da FENARC, militante ambiental e defensor das religiões de matriz africana no RS.

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