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domingo, 25 de agosto de 2024

A epifania do Senador Epifânio

A comunicação verbal é o principal canal utilizado pelo ser humano para se expressar. Alguns até fazem da fala sua profissão: palestrantes, entrevistadores, cantores, locutores etc. Mas o que ninguém consegue explicar é o estrondoso sucesso de Epifânio Calado, de quem nunca se ouviu uma só palavra, aliás honrando o próprio sobrenome.

Nasceu num 29 de fevereiro, data que ocorre uma vez a cada 1.460 dias, e não chorou ao vir à luz. Os exames clínicos não revelaram qualquer problema e o diagnóstico unânime foi “voto de silêncio ao nascer”, fato muito raro. Ele pode falar se e quando quiser, mas seu silêncio sempre “falou” mais alto que qualquer barulho.

Desde muito jovem demonstrou habilidade para criar tabelas e gráficos fantásticos que todos compreendiam sem necessidade de explicação. Nunca teve amigos ou nem inimigos e nunca jogou conversa fora. Por incrível que pareça, teve uma bela mulher. Partiu dela o pedido de namoro, respondido apenas com o sinal de positivo. Não se casaram, porque ele teria de dizer “sim” ao celebrante. Samuela o definia como carinhoso, prestativo, e gentil, mas se ressentia por nunca ter ouvido um “eu te amo”. 

Ele absorvia toda informação sem dificuldade e se fazia compreender mesmo sem dizer nada. Autodidata, falava, ou melhor, ouvia, lia e escrevia em vários idiomas. Era sucinto também nos gestos e na escrita. Especializou-se em Políticas Públicas. Quando analisou o projeto de lei dos aromatizantes, seu parecer teve apenas uma palavra: Inodoro (não cheira e nem fede). Por viver de boca fechada, sua ascensão foi meteórica. Nunca falou mal de ninguém e quem não cria confusão costuma ser promovido. A postura não conflituosa era seu maior trunfo. 

Fenômeno midiático, todos queriam conhecer aquele que subiu na vida sem falar coisa alguma e que nunca foi entrevistado no rádio ou na TV, pois nada diria. Celebridade cultuada também no exterior, era recordista de seguidores nas redes sociais, mesmo sem qualquer postagem. Segui-lo no Twitter, Instagram, Linkedin e Facebook conferia status em conversas, no currículo e nas entrevistas de seleção.

A pressão do público o levou a ingressar na política. É de pessoas assim que o país necessita, diziam. Competente, sério, honesto, não critica ninguém e ainda por cima é especialista em políticas públicas. Sem fazer campanha ou comício, foi o Senador mais votado. Empossado, tornou-se Relator da Comissão Mista do Orçamento.

Ao relatar a lei orçamentária, revisou as metas de inflação, endividamento, equilíbrio fiscal e apresentou várias tabelas e gráficos preocupantes. Os membros da Comissão entenderam a gravidade do problema, mas antes de votarem queriam ouvir as recomendações do Relator e começaram a gritar: fala, fala, fala!

O presidente da casa insistiu que Relator deveria se manifestar. Para espanto geral, Epifânio levantou-se, dirigiu-se à tribuna e ajeitou o microfone. O Primeiro Secretário, atônito, cochichou a um assessor:

  • O que ele está fazendo? Será que vai falar pela primeira vez?
  • Calma, senhor. Ele está tendo uma epifania, não um AVC!
  • Com a palavra, o Senador Epifânio – disse o presidente do Congresso.

Ele pigarreou, sinalizou uma única palavra e a pronunciou alto, claro e em bom tom: FERROU! A tradutora de libras deu um tapa com a mão direita sobre a mão esquerda fechada, fazendo o conhecido “top-top” uma única vez. Epifânio sentou-se sob calorosos aplausos. Aquele discurso memorável foi destaque nos jornais e TVs mundo afora e virou livros e teses de doutorado.

Epifânio seguia em alta até que, mesmo sem qualquer inimigo, sua vida caiu em desgraça. São comuns casos em que o sucesso, o dinheiro e o poder levam a pessoa a fazer bobagens e perder tudo. Mas por que ele, que nunca falou mal de ninguém? O ciúme é o pior dos venenos e ciúme político, o mais fatal!

Todas as pesquisas apontavam Epifânio como o próximo Presidente da República e o pessoal do baixíssimo clero resolveu aprontar para ele. Um dossiê vazou para a mídia, com documentos e gravações de escutas telefônicas nas quais ele conversa com um tal “Chefe” sobre os planos para o golpe, sem especificar qual golpe, além das verbas desviadas para financiar a causa. O número de seus seguidores despencou imediatamente. 

Investigações foram abertas e uma CPI foi instalada. Os peritos não garantiram que a voz das gravações era mesmo de Epifânio, pois nunca a ouviram, mas venceu a tese da presunção de culpa, pois também não podiam jurar que não era sua voz. Seu mandato foi cassado e a ordem de prisão expedida. O sistema havia mudado para: prende primeiro, processa depois. A polícia esteve em sua casa, mas como ninguém atendesse a campainha, arrombaram a porta. Epifânio jazia no tapete da sala. No P. S. diagnosticaram AVC severo e não uma simples epifania.

Hackers provaram que os documentos do dossiê eram falsos e os áudios extraídos de filmes e novelas. Era tudo fake, só para enlamear seu currículo. Na política, quando alguém quer sangue, qualquer pum vira diarreia. Com a fraude revelada, sua honra foi restabelecida. Fãs e seguidores das redes sociais voltaram, mas a vida de Epifânio não.

O velório foi concorrido, com a presença de celebridades e líderes mundiais. Até o Papa enviou condolências. No sepultamento, a pedido de Samuela, o orador discursou por apenas 1 minuto, em libras, sem transmissão ou filmagem. Como a viúva não se opôs, admiradores e seguidores inauguraram seu busto e uma grande placa de mármore junto ao túmulo, com os dizeres: Senador Epifânio Calado. Homem honrado. Morreu em paz. Disse tudo!

Laerte Temple
Laerte Temple
Administrador, advogado, mestre, doutor, professor universitário aposentado. Autor de Humor na Quarentena (Kindle) e Todos a Bordo (Kindle)

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