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sábado, 20 de dezembro de 2025

A Democracia com Notas: Quando o Estado se Assusta com o Espelho Próprio

É preciso descer muito baixo para transformar a ignorância em arma política. A Câmara dos Deputados resolveu cavar mais fundo e aprovou, na sessão de gala do obscurantismo, uma emenda ao Projeto de Lei Antifacção que proíbe presos provisórios de voto. A justificativa circula entre o folclórico e o trágico, indicando economia de recursos e risco operacional diminuído quando se nega a cidadania àqueles que o Estado decidiu isolar preventivamente. Pobres cofres públicos, sempre em perigo quando a dignidade alheia entra na conta.

Para quem consome apenas manchetes em caixa alta, a fórmula é sedutora: preso não vota, bandido não escolhe seu próprio juiz. Esse discurso, repetido para emburrecer a plateia, é populismo de almanaque e projetado para alimentar a ignorância domesticada da maioria. Os deputados, num acesso de moralismo performático, celebraram 349 votos a favor dessa restrição, como se enjaularem direitos fosse virtude política. É sempre mais fácil governar quando se entrega ao povo um grilhão e se confisca um espelho.

Nada representa melhor esse descompromisso com a cidadania do que a situação dos presos provisórios. Hoje, aproximadamente um em cada quatro indivíduos encarcerados recebeu relatórios definitivos. O número absoluto é pornográfico: cerca de 183.800 pessoas encarceradas sem julgamento final no Brasil, de acordo com fontes oficiais do próprio poder público. Assim, o Estado brasileiro revela sua verdadeira vocação, não punir o suspeito de maneira exemplar, mas castigar preventivamente o suspeito. E não satisfeito, retira sua voz do único espaço legitimador do poder institucional, o voto. Todos esses dados são públicos e não escapam à avaliação nem mesmo do eleitor mais desatento, embora o Congresso confie que a maioria jamais irá procurá-los de verdade.

A legislação não embaralha conceitos: presos definitivos, aqueles que já esgotaram seus direitos recursais e cujas sentenças transitaram em julgado, têm os direitos políticos suspensos conforme ordena a Constituição. Já os provisórios aguardam julgamento e, à luz do direito, continuam presumidos inocentes. Ao primeiro arrancar o voto, o Parlamento zomba da presunção de inocência. O dogma jurídico fundamental, tão defendido nos manuais, é evitado quando o aplauso fácil chama mais alto que a coerência republicana.

Assiste-se, então, a um espetáculo de covardia institucional, mascarado de heroísmo moralista. O Estado brasileiro, sempre tão célere em castigar antes de julgar, aprimora seu ritual: convencer a maioria de que os direitos que estão na margem são, na verdade, ameaça para quem se julga centro. Trata-se de retirar do preso provisório o voto não porque ele seja perigoso, mas porque sua existência lembra, de forma incômoda, que a democracia local nunca foi produto de uma cidadania plena e sim benefício transitório proporciona sob intensa vigilância.

Parabéns aos autores e entusiastas da fachada. Fizeram história ao mais baixo preço possível. Quando faltar democracia, bastará consultar os anais para saber quem a leiloou na praça pública: sempre em nome da ordem, da economia, do progresso e, sobretudo, da ignorância docilmente cultivada.

Manuel Flavio Saiol Pacheco
Manuel Flavio Saiol Pacheco
Doutorando e Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em Justiça e Segurança pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Especialista em Desenvolvimento Territorial pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).. Possui ainda especializações em Direito Tributário, Direito Constitucional, Direito Administrativo, Docência Jurídica, Docência de Antropologia, Sociologia Política, Ciência Política, Teologia e Cultura e Gestão Pública e Projetos. Graduado em Direito pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Advogado, Presidente da Comissão de Segurança Pública da 14º Subseção da OAB/RJ, Servidor Público.

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