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Quando a frase tropeça, mas a ideia caminha

A recente declaração de Lula, afirmando que “os traficantes são vítimas dos usuários”, caiu como uma pedra no campo da opinião pública — provocou ondas, distorções e julgamentos rápidos. A frase, isolada, é como um desvio perigoso: afinal, reduzir o tráfego a uma vítima parece desconsiderar o poder, a violência e o lucro que movem o narcotráfico. No entanto, ao sair da superfície da literalidade e mergulhar na intenção, entende-se que o presidente tropeçou na forma, mas designado para um fundo incontornável: o tráfico de drogas na América do Sul é, em larga medida, consequência de uma procura global — sobretudo da Europa e dos Estados Unidos.

A economia da droga é uma engrenagem trilateral. A ponta mais vulnerável são os países latino-americanos, produtores e corredores de substâncias; no meio, o lucro que atravessa fronteiras e riqueza de redes poderosas; e, no topo, as nações consumidoras, onde o tráfico de classes altas financeiras e as guerras silenciosas das periferias tropicais. O Brasil, como boa parte da América do Sul, não é o epicentro do consumo, mas o palco do confronto entre ausência de oportunidades e oferta fácil de dinheiro ilícito. Quando Lula fala em “vítimas”, talvez evoque essa lógica perversa: jovens cooptados pelo tráfico porque o Estado lhes manda negociar tudo antes mesmo do crime.

A frase foi mal colocada, e o erro das palavras mal postadas é sempre grande — especialmente em tempos em que a interpretação virou esporte de guerra. Mas é preciso considerar que uma reflexão sugerida não é banal. Apontar o dedo apenas para o traficante de chinelo, sem encarar o consumidor elegante de Amsterdã ou Los Angeles, é negar o outro lado do espelho. O tráfico não nasce no morro; nasce na festa, na bolsa, no mercado que prefere não se ver como parte da cadeia.

Entre a palavra e o sentido há sempre um desfiladeiro, e Lula, dessa vez, escorregou na travessia. Mas o ponto a que queria chegar — a hipocrisia global que criminaliza os pobres e consome o produto deles — continua de pé. Foi uma linguagem que falhou, não é uma ideia. E no jogo das narrativas, às vezes a frase tropeça, mas a verdade continua caminhando.

E há algo que é uma ocorrência furiosa à fala do presidente comprova, é que o cinismo internacional está bem vivo: todos querem combater o tráfico, contanto que o pó continue chegando pontualmente às narinas civilizadas do primeiro mundo. No fim das contas, há muita gente que prefere julgar a gramática de Lula a encarar a gramática do próprio vício. E talvez seja essa a tragédia da política contemporânea: quem ousa apontado para a ferida é sempre prejudicado por tê-la nomeado em voz alta.


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